
O vídeo da CBF anunciando Carlo Ancelotti foi uma aula de como não apresentar um projeto técnico. Ednaldo Rodrigues apareceu com a animação de quem anuncia cancelamento de férias, soltou um “o hexa vem aí” com os braços levantados, mas alma nenhuma, e confirmou o que já sabíamos: a entidade está mais preocupada com o marketing de resultado do que com o conteúdo.
Mas esqueça o vídeo por um momento. Porque o conteúdo, neste caso, é gigante.
O cérebro por trás do currículo
Carlo Ancelotti não precisa mais provar nada a ninguém. Conquistou títulos em todos os grandes centros da Europa: Milan, Chelsea, PSG, Bayern, Real Madrid. Mas o que pouca gente discute com profundidade é por que ele ganha tanto.
Ancelotti é a síntese entre gestão de grupo e leitura tática refinada. Não é um técnico de dogmas — é um técnico de contexto. Alterna entre 4-3-3, 4-4-2, 4-2-3-1 e até o clássico 4-3-2-1, a "árvore de Natal", com fluidez, sem perder os princípios. No Real Madrid, por exemplo, chega a usar mais de uma estrutura dentro do mesmo jogo, sempre ajustando ao que o duelo pede — e ao que os seus jogadores sabem oferecer.
Essa capacidade de moldar a equipe sem perder a identidade é a marca registrada de Don Carlo.

Um jogo de ideias — e não apenas de sistema
Nos seus times, o modelo de jogo é claro: compactação defensiva, posse com progressão e liberdade ofensiva para os talentos desequilibrantes. Ele dá estrutura sem engessar. Permite que o jogo flua a partir do entendimento dos jogadores — algo que, convenhamos, combina com o perfil técnico do atleta brasileiro.
Valverde e Vinicius Júnior já mostraram como Ancelotti usa deslocamentos funcionais para desorganizar defesas. No Brasil, jogadores como Rodrygo, Paquetá, Endrick e Bruno Guimarães têm esse perfil de movimentação, e podem crescer muito sob sua batuta.
Além disso, seus times atacam com muitos jogadores dentro da área, trabalham recargas ofensivas e variam o ritmo para cansar o adversário. Tudo isso sustentado por uma defesa organizada, que alterna pressão alta com bloco médio ou baixo — dependendo do adversário e da competição.
Mas... vai dar tempo?
O desafio agora é o ambiente. A Seleção treina pouco. Joga sob pressão. Convive com um calendário esmagado, interferências políticas e um clima de “vença ou desapareça”. E a CBF, sejamos francos, ainda pensa o futebol como se estivéssemos em 1994.
Ancelotti chega com estofo, mas também com um dilema: como implantar um modelo de jogo coletivo em um cenário fragmentado e sem continuidade?
Não se trata de saber se ele é bom — ele é. A questão é: a estrutura brasileira está disposta a dar a ele as condições que precisa?

O ponto de partida é a identidade
O torcedor brasileiro quer mais do que o hexa. Quer voltar a reconhecer a Seleção pelo jogo, não só pela camisa. Quer ver um time que combine talento com organização, que jogue bonito sem ser ingênuo, e que saiba competir sem abrir mão da essência.
Ancelotti pode ser esse elo entre o passado glorioso e um futuro mais lúcido. Mas, para isso, precisa de autonomia, tempo e um mínimo de racionalidade institucional — algo que, no anúncio da CBF, passou bem longe.