Longe dos holofotes da mídia internacional e de grandes esforços quanto à ajuda humanitária, Moçambique - país localizado no sul e oeste da África, colonizado também por Portugal -, há cerca de dois meses têm enfrentado mortes, miséria e fome em níveis alarmantes. A recente devastação aconteceu após a passagem de dois ciclones em um curto espaço de tempo, que causaram rastro de destruição jamais visto no Hemisfério Sul do continente africano.
O ciclone Idai, o primeiro a atingir Moçambique e países vizinhos neste ano, no início de março, deixou mais de 1.000 pessoas mortas e 100 mil desabrigadas. Logo em seguida, surgiu o ciclone Kenneth, atingindo o país no final de abril, deixando cerca de 40 mortos e 18 mil desabrigados. Os dados foram divulgados por autoridades locais e são de acesso público. A preocupação é ainda maior pois um terceiro ciclone está se formando naquela região.
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Historicamente, a África sempre foi um continente onde a exploração e a miséria imperam. Fome, sede, doenças e a falta de condições básicas para a sobrevivência são intempéries enfrentadas por aquele povo há um milênio. Para quem conhece o mínimo da situação dos africanos é difícil imaginar que ela poderia piorar. Mas, piorou. Os desastres naturais citados foram avassaladores para aquele povo que, há muito, precisa de ajuda e, mais do que nunca - nos últimos tempos -, é que as atenções humanitárias devem estar voltadas a eles.

Mas, infelizmente, não é o que tem acontecido. A mobilização ainda é muito pequena considerando a gravidade do caso. "Vejo como um descaso do ser humano para o ser humano. Quando a morte é do preto é uma dor solitária e esta dor é para valer. Mas, quando a morte é do branco, logo a sociedade sente muito e se mobiliza. A dor do preto é invisibilizada. A dor do preto é multiplicada a zero, ela não existe. Mas, quando é a dor do branco todo o mundo fica em pé, todo o mundo fica mobilizado", crítica a moçambicana, doutoranda de Educação pela Ufal, Sónia André.
"Moçambique é um país extremamente pobre financeiramente falando e carece de recursos, entretanto existe um descaso muito grande, não só com Moçambique mas como com todos os países do continente africano, em relação à mídia. Se nós formos comparar matérias e divulgação, por exemplo, de catástrofes que acontecem na Europa e nos Estados Unidos reverberam muito mais do que nos países da África. Às vezes, o que acontece com 10 pessoas da Europa têm muito mais divulgação do que o que acontece com 500 ou mais vítimas nos países africanos. Neste caso, podemos afirmar que, para a sociedade, vidas negras não importam", criticou também a moçambicana, graduanda de Pedagogia pela Ufal, Denise Sacur.
Para repercutir o caso, aGazetawebconversou com as moçambicanas Sónia e Denise para entender melhor o que se passa naquela região da África e divulgar as ações de amparo idealizadas por elas.
Mobilização em Alagoas
Na contramão do descaso, moçambicanas - estudantes da Ufal e UFPE [universidades federais de Alagoas e Pernambuco] -, iniciaram uma campanha de arrecadação de donativos, como material escolar, roupas, comida e, principalmente, uma 'vaquinha' online para ajudar o povo daquele país.
No entanto, passados quase 20 dias, apenas 3% do objetivo foi conquistado. A arrecadação dos materiais tangíveis foi encerrada no dia 15 de abril e, neste caso, atingiu a meta. Já a vaquinha segue até o dia 14 de maio.
Elas não pedem muito. A quantia estimada é de R$ 20 mil e, juntando às doações da população destes dois estados citados, resultou-se no montante de, apenas, R$ 690, que foram arrecadados até a data de fechamento desta matéria. Foram 20 dias para chegar a este valor.

Chama a atenção o fato de, até então, apenas, oito pessoas terem doado, sendo sete delas mulheres, ato que enfatiza a sororidade e a empatia entre elas. No entanto, a ajuda ainda não é razoável para dar andamento a ação. A ideia é que Sónia leve pessoalmente os donativos para aquela população, dando atenção aos mais esquecidos pelas grandes ONGs. Ela garante que, após a ação, dará um feedback para quem ajudou à causa.
"Deixamos a vaquinha onlinepara que cada um deposite o que puder, dentro das suas limitações. É simples: é só clicar no link e seguir as instruções. A campanha aceita boleto, débito e crédito, enfim têm várias formas de poderem ajudar. Eu espero que Alagoas se mobilize neste sentido e que possamos nos mostrar presentes de fato. Mostramos para esses negros, à essa mãe, a África - que muitos afro-brasileiros se reportam ao falarem de suas raízes -, que o Brasil se importa. Neste momento, a mãe África está precisando de todos", intercede a moçambicana.
"Passei noites e noites enviando e-mails [com o link da vaquinha] para professores, dirigentes da própria universidade e do governo do Estado, na esperança de que, não só fizessem as suas doações, mas também de que se mobilizassem e pedissem para que os alagoanos façam parte desta campanha, mas o valor conquistado até agora é só este que está aí na lista de doadores", criticou a doutoranda.
O que resta ao preto
Muito sensibilizada com a situação do seu povo, Sónia questiona a atitude do humano para com o ser humano. "Um dos exemplos são os valores absurdos que foram arrecadados e direcionados para a reconstrução da catedral Notre Dame que, em um dia, já batia recorde de bilhões de dólares na conta. Enquanto, a nossa vaquinha não chega nem a mil reais".

"A tragédia ocorrida na África tem sequelas terríveis, estamos tentando nos recompor devagar e isso vai levar um grande tempo. Diferente de Notre Dame, que vai levar apenas um piscar de olhos, porque os valores arrecadados já são o suficiente para isso. Nós tivemos perdas humanas que, diferente da catedral, teve apenas perda material. Eu entendo a importância de Notre Dame para a história do mundo, para a história do ocidente - mas o que é um objeto perante a vida humana? Muitos se ajoelham perante a um edifício que é apenas um símbolo. Símbolo que o próprio homem olha ele achando que Deus está nele e não veem Deus no ser humano, no seu irmão, no seu vizinho", estima Sónia.
Se aprofundando na questão, a doutoranda cita casos de prostituição infantil em troca de comida e casos de epidemias de doenças após a passagem do tornado. Além do alto número de mortes.

"Quando esta questão eclodiu, eu disse que ia haver muita prostituição infantil, o que de fato está acontecendo. Vemos nos jornais relatos de que algumas mães tiveram que se entregar para homens para poder alimentar seus filhos em troca de um quilo de alimento. Meninas mais novas, de 12, 13 anos, se entregando também para conseguir um pouco de alimento para dentro de suas casas. Então, eu pergunto onde está a humanidade no meio disto? Onde está o ser humano, a sororidade no meio desta tragédia? Onde estão as autoridades nesses espaços?", criticou.
"Claro que eu entendo a situação da mãe naquele momento. Quando a mãe ver o seu filho morrendo de fome ela faz de tudo, ainda que seja para se entregar a um homem em troca do alimento. Só não entendo o homem que exige isso, a ponto de querer que elas se deitem com ele para justamente proporcionar esse alimento. Eu, que luto pela saúde, pela vida, pelos direitos das crianças e, sobretudo, das meninas, fico sem assim".