
O cineasta alagoano Cacá Diegues morreu na madrugada desta sexta-feira (14). Ele tinha 84 anos e passou por complicações em uma cirurgia. Carlos José Fontes Diegues nasceu em Maceió, no dia 19 de maio de 1940, e se mudou para o Rio de Janeiro, aos seis anos de idade.
Em fevereiro do ano passado, o maceioense concedeu uma entrevista exclusiva à Gazeta de Alagoas, onde falou sobre suas produções e vida pessoal, que foram marcadas por muitos desafios.
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Cacá Diegues foi um dos fundadores do Cinema Novo ao lado de Glauber Rocha, Leon Hirszman, Paulo Cesar Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e outros cineastas.
Veja a matéria:
Cacá Diegues: Cinema e Coração
Quando Taoca (Wagner Moura) diz, em Deus é Brasileiro, que “a vida é um porto aonde a gente não acaba de chegar nunca”, Madá (Paloma Duarte) se surpreende e pergunta que autor famoso teria construído aquela frase.
A visão de futuro, sempre e privilegiada pelo cineasta alagoano Cacá Diegues, 83, fica clara. É um contraste quase perfeito com a frase final de ‘O Grande Gatsby’, de F. Scott Fitzgerald: “E assim prosseguimos, botes contra a corrente, impelidos incessantemente para o passado”.
Coincidentemente ou não, os personagens de Diegues encerram o filme deitados em um barco enquanto o mar se mexe ao redor deles, mas não neles, inseridos de forma perfeita em suas vidas modificadas direta ou indiretamente pela presença de Deus.
Em longa entrevista com a Gazeta de Alagoas, o alagoano não se acanhou em falar de momentos importantes da sua carreira e de sua vida, como a perda da filha Flora e a construção de uma entidade brasileira no cinema.
Nem tudo preCisa ser explicado, mas externar um sentimento por meio da arte é intrínseco.
GAZETA: Como é que foi a reta final do Brasileirão pra você, como torcedor do Botafogo?
CACÁ DIEGUES: Foi muito triste, né. Foi muito triste porque... a gente estava esperando ser campeão, né. Com 13 pontos de diferença na virada para o segundo colocado, é muito difícil ser impedido de ser campeão, né. Eu acho que o Botafogo é uma coisa que a gente gosta ou não gosta, entendeu? Você ama ou não ama. Então eu amo o Botafogo desde que eu vim pro Rio de Janeiro. Então não tem problema, eu sou muito compreensivo nessas coisas, não tem problema nenhum.
Como era a produção de cinema quando você começou?
É o seguinte, a produção de cinema no Brasil sempre foi meio insegura, porque eu nunca sabia se o filme ia passar mesmo, como é que seria toda essa parte, com um baixo orçamento. Então, para vencer tudo isso, foi muito difícil, muito difícil. Mas a gente venceu. Eu tenho muito orgulho. Eu tenho muito orgulho de ser um cineasta dessa geração que conseguiu realizar essa vitória do cinema brasileiro, que se impôs no mercado nacional e de passagem nos cinemas.
E como foi que você chegou a esse momento?
A gente tinha essa preocupação nas outras atividades. A gente escrevia. Eu escrevi muito, eu trabalhei muito em jornal, escrevi muito artigo. É uma coisa muito ligada, essa coisa da cultura brasileira ver um valor em si, que podia ser valorizado, que podia ser premiado com uma outra visão. Então, na verdade, o princípio básico era a gente mostrar no cinema, através do cinema, o Brasil que as pessoas não conheciam, o Brasil que as pessoas não sabiam que existia. Porque o cinema brasileiro sempre foi um cinema meio disfarçado, né, porque a gente fazia filmes que eram o filme dos estrangeiros. A nossa geração dos anos 50 e 60 foi uma geração que se dedicou muito a essa coisa de ser brasileiro. Então, no cinema, isso deu o quê? Isso deu um cinema mais brasileiro do que os outros, né? Um cinema mais real. As pessoas viam Brasil de um ponto de vista novo, de um ponto de vista realmente inédito, que era o Brasil, o Brasil da crise, o Brasil da dificuldade. Era esse o Brasil que a gente conhecia.
Os filmes de vocês se conversavam?
Era uma geração que estava fazendo todos os filmes, e era bem interessante, porque eu não ficava pensando o que o outro ia fazer, não, a gente fazia tudo por nossa conta, então essa coisa do que o outro estava dizendo, acontecia meio por um acaso. A identificação das pessoas no cinema novo foi uma identificação que surgiu quase que por uma causa, porque, na verdade, não tinha nenhuma regra. Isso melhorou muito a nossa vida, e impediu que a gente ficasse prisioneiro de determinados estilos.
Como é que você se sente, assim, sabendo que foi um formador desse cinema que encontramos hoje? Como enxerga a sua produção de lá para cá?
Eu fico muito feliz. Eu me sinto muito bem, muito bem sucedido, é uma coisa que nós fizemos. A gente vai fazendo os filmes e os filmes vão sendo resultados dos nossos princípios, mas também das nossas tendências, vamos dizer assim. Porque, na verdade, nós não podemos ficar querendo repetir a mesma coisa. Então, por exemplo, eu comecei a fazer filmes muito, muito preocupado em criar personagens equivalentes aos personagens dos grandes cinemas, dos grandes cinemas estrangeiros. Ou seja, personagens capazes de definir o futuro daquele estado, o futuro daquele país, o futuro daquela cultura, o futuro daquele povo. Hoje, eu acho que eu passo o filme que estiver naquele momento interessado em fazer, em contar a história que me interessa.
O que mais mudou para você?
Hoje eu não sei se faria Ganga Zumba novamente. Porque eu acho que essa concepção de herói que muda o país, de herói capaz de mudar o país, também está bem repetida. Eu não me interesso mais por isso. Se pudesse, eu já corria. Eu vou colocar o mundo numa outra dimensão, num outro espaço, numa outra direção. Então isso é que é importante para mim hoje. Não é você descobrir o herói que mudou o país, é você descobrir o herói do dia a dia.
O Taoca, de Deus é Brasileiro, não seria um personagem possível atualmente?
Exatamente. Eu acho que a gente tem que acompanhar o que o país está mudando junto. O mundo está mudando muito e eu acho que nós estamos caminhando numa direção muito perigosa. Não sei o que vai acontecer com o planeta, não sei o que vai acontecer com a humanidade, não sei o que vai acontecer com os outros de modo geral. Então isso aí inclui o Brasil também. O que vai acontecer com os outros, o que vai acontecer com o país. E aí não tem milagre nacional, você precisa falar com as pessoas comuns, com as pessoas o dia a dia. Com as pessoas que atuam no país no dia a dia.
Você sempre foi muito ligado ao que acontece no país, e por isso sempre quis trazer essa realidade aos seus filmes. Mas como funciona isso?
Então, tudo que foi inventado é perigoso, né? É perigoso. É preciso não inventar, é preciso partir para a pesquisa mesmo para descobrir o que está acontecendo naquele determinado ambiente, naquele determinado problema e tentar resolver por ali, de uma maneira mais realista, de uma maneira mais objetiva.
Você segue otimista?
Eu acho que eu estou perdendo aquele otimismo que eu tinha, porque eu estou vendo que o país está caminhando junto com o planeta para uma situação perigosa, né? Uma situação bem sem saída. Não estou falando só da crise climática ainda. A crise Climática vai crescer no mundo. Mas como é que você vai resolver esse problema, por exemplo, do Lula falando da guerra? É muito difícil. Eu acho que nós estamos caminhando para uma situação muito difícil. Muito insustentável. As pessoas estão muito impacientes. E isso é normal, porque a dor da crise é muito grande.
E no cinema? Faz mal essa questão do streaming, por exemplo?
Eu não vou falar pra isso, não. Não é isso, não. Porque eu acho que aí tem uma coisa que é típica da internet, que é uma coisa rápida. Muitos cineastas levaram muito mais tempo pra explicar o que pensavam da vida e do mundo.
Você gosta da ideia do streaming?
Não é que eu gosto. Eu acho que a gente não deve reclamar. Porque divulga os filmes nacionais de uma forma mais fácil. O filme do país.
Maceió e Rio de Janeiro são suas cidades. Como é sua relação com ambas?
Olha, eu me sinto meio filho das duas cidades, né? Eu sou filho das duas cidades. O Rio me ensinou muito a conhecer o mundo. E Maceió a conhecer as pessoas. E sempre tem um elemento de Alagoas nos seus filmes… É, todos os meus filmes têm, olha. Aí é uma coisa que eu não tinha percebido. Eu percebi agora, recentemente. Porque, na verdade, eu nunca fiz isso propositalmente. Mas, como eu não tinha muita capacidade para filmar fora do Rio de Janeiro, porque é muito caro, então Maceió, para mim, foi sempre um sonho filmar lá, mas sem a possibilidade de realizar isso em todos os filmes. Todos os meus filmes falam de Maceió. Tem personagem alagoano, heróis alagoanos, mas eu filmei pouco em Maceió. Quando eu fiz o primeiro filme [Ganga Zumba], eu tinha que falar de Alagoas.
Você participou do desfile da Beija-Flor. Gostou?
Acho que foi uma homenagem bem bonita. Foi muito bonito. Eu achei que eu devia participar.. Eu fiquei muito orgulhoso e muito satisfeito de ter participado disso.
Você também já foi eleito como imortal da Academia Brasileira de Letras.
Foi muito importante, muito importante. Me deixou eterno na cultura brasileira. A Academia serve para divulgar a cultura do Brasil, mas também para ajudar a criar essa cultura brasileira.
A perda da sua filha Flora lhe deixou sem esperanças?
Foi muito triste, porque a Flora era muito nova. Foi uma coisa de repente, que ninguém esperava, nem eu, nem a mãe dela, então eu sofri muito. Fiquei muito tempo sem fazer nada. Agora estou voltando a viver, a filmar. É muito difícil de se recuperar, né. Uma filha jovem, que viveu muito pouco. Eu fiquei muito arrasado, muito deprimido. As mulheres entraram ainda mais na vida do cinema, inclusive a Flora. Eu sempre achava que as mulheres entrariam na área. Agora, estão tomando conta do cinema, tomando conta de toda a produção cultural do mundo, né? Então acho que as mulheres agora descobriram a sua capacidade de criação, a sua capacidade de inserção. A Flora fez muita coisa no cinema. Foi atriz, diretora, roteirista. Tinha muito a fazer ainda.
E sua amizade com o Arnaldo Jabor?
É uma coisa bem difícil falar agora dele. O Arnaldo era um grande cineasta, um grande cineasta mesmo. E ele tinha uma capacidade de ver as coisas, assim, de estar e pronto, de saber... Ele tinha a capacidade de revelar as coisas de uma maneira brutal, de uma maneira que precisava ser assim, porque precisava ser imediato, né? E eu tinha muito carinho por ele.
A vida é um porto aonde a gente não acaba de chegar nunca. Deus É Brasileiro termina assim. O que significa para você?
Sei lá. Eu não sei o que dizer. É isso que eu sinto, né? Eu sinto isso. Esse também é um sentimento muito forte, muito poderoso. Tem certas coisas que são pessoais. Que você faz porque você tem necessidade de fazer. São coisas da sua personalidade, do seu conhecimento pessoal. Eu te digo uma coisa, eu parei de pensar nessas coisas. Nem tudo é resultado de uma organização mental. É aquilo que tem vontade de colocar pra fora. A produção de arte é muito isso, a necessidade também de externar essas coisas que a gente não consegue explicar.
Veja abaixo a matéria publicada na edição dos dias 24 e 25 de fevereiro de 2024: