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Pescador: a difícil missão de viver entre a terra e o mar

Trabalhadores temem que, um dia, a profissão, marcada no imaginário cultural alagoano, chegue ao fim

À FRENTE DE UMA DAS ATIVIDADES MAIS SOFRIDAS E TAMBÉM MAIS IMPORTANTES DE ALAGOAS, PESCADORES PRECISAM LIDAR COM ESCASSEZ DE PESCADO, LONGAS JORNADAS DE TRABALHO, PROBLEMAS FINANCEIROS, OBSTÁCULOS NO PAGAMENTO DE DIREITOS, PRECONCEITO, ALCOOLISMO, ESQUECIMENTO DOS ÓRGÃOS COMPETENTES. DIFICULDADES ENFRENTADAS NAS ÁGUAS E NA COSTA SÃO TANTAS QUE TRABALHADORES TEMEM QUE UM DIA A PROFISSÃO, MARCADA NO IMAGINÁRIO CULTURAL ALAGOANO, CHEGUE AO FIM.


				
					Pescador: a difícil missão de viver entre a terra e o mar
FOTO: felipe brasil

Trabalho árduo e muitas dificuldades financeiras

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O relógio costuma bater às 2h da madrugada quando José João Justino, o seu Deca, entra no mar. O galo ainda nem sonhou em cantar, e o pescador já deixa para trás o que restou da antiga comunidade de Jaraguá em direção às águas. Dependendo do local para onde vai, a viagem pode castigar - como é o caso do Pontal do Peba, em Piaçabuçu, num percurso que toma nove horas para ser feito. Mas assim que chega, seja onde for, joga logo a rede. E não para mais.

São de três a quatro homens no barco e, pelos próximos quatro ou cinco dias, serão apenas eles e a natureza num trabalho intenso. Assim como na pesca, que é feita num revezamento tanto debaixo de sol como sob a luz da lua, as outras atividades são também divididas irmãmente. Cozinhar é uma delas. Arroz, feijão, frango e farinha compõem o chamado rancho que será preparado ao longo do período navegando pelo oceano.

Na embarcação, vão ainda uns 400 litros de óleo e mais 20 sacos de gelo. "No barco tem beliche, um fogão de duas bocas. Levamos gás, carne, galinha, feijão, arroz. Cozinhamos tudo o que comemos, e cada um tem seu dia de fazer a comida. Todo mundo tem que saber cozinhar, porque não podemos esperar só por uma pessoa", diz seu Deca, 52 anos e pescador desde 1982, quando tinha apenas 16.

Entrou na profissão por meio de um amigo, mas desde os 12, quando se mudou para o histórico bairro de Jaraguá, observava as redes sendo lançadas ao mar. E também já trabalhava bem antes disso. Aos sete, era ajudante de caminhão, auxiliando na carga e descarga de produtos. Aos 10, virou cortador de cana-de-açúcar, ofício que ainda alimenta milhares de alagoanos espalhados pelo Estado.

Não tinha a pesca no sangue da família, como acontece com muitos nascidos e criados na comunidade que se afixou por ali, mas bastou conhecê-la para se apaixonar. "Gostei e até hoje estou nesse ramo. Talvez não pare mais, só quando morrer. Trabalho porque eu gosto, então acho difícil sair. Oportunidade de carteira assinada, para trabalhar fazendo entregas, eu já tive, mas não quis. Não gostava da profissão e já estava habituado a ser pescador", conta.

Isso não quer dizer que as dificuldades enfrentadas por quem vive mais em águas profundas do que em terra firme não existam. Ou que não sejam muitas. Pelo contrário. E elas começam logo no próprio Atlântico: por estas bandas, a mercadoria tem andado cada vez mais escassa. O que um dia já foi abundante, hoje preocupa quem necessita da exploração do peixe e do camarão para sobreviver.

"Não temos uma média de quanto pescamos por mês porque depende da maré. No inverno ainda aparece um camarãozinho, mas no verão, nada. Agora mesmo tem mais de 15 dias que estamos parados, e essa draga acabou com o resto", lamenta seu Deca, referindo-se ao equipamento que faz, há cerca de duas semanas, a dragagem do Porto de Maceió. Os pescadores reclamam que o lixo retirado tem sido jogado na chamada Lama Grande, onde pescam.

E a renda, que não é certa, muitas vezes acaba não dando nem para o básico. "Quando está ruim, às vezes a gente não tira nem a despesa. Quando está bom, ainda dá pra tirar uma mixariazinha", aponta ele. Os custos só para ir trabalhar, aliás, são muitos: em cada viagem, o grupo gasta mais de R$ 1000 com combustível, sacas de gelo - que vai conservar o pescado - e alimentação.

Conhecido como Baiano, Arnaldo dos Santos é outro que se queixa das dificuldades. Assim como Deca, pesca desde a adolescência, mais precisamente desde os 15. Chegou em Alagoas aos 18 e nunca mais voltou para a terra natal. Mas ao contrário do colega, que fica quase a semana toda fora, ele vai e volta da pescaria todos os dias. Costuma sair no final da tarde, por volta das 17h, e retorna de madrugada, lá pelas 2h, 3h da manhã.

Aos 58 anos, o foco dele hoje é somente o peixe. Diz que, com a idade, o mar vai castigando muito, e camarão é item mais trabalhoso para se conseguir. Quando dá sorte, chega a ganhar R$ 150 de uma vez, mas momentos como esses são raros, como o próprio Baiano gosta de frisar bem. Tira, em média, entre R$ 30 e R$ 40 diários, numa vida assim cheia de altos e baixos.

"É difícil nosso trabalho. Enfrentar a natureza não é fácil, e às vezes trabalhamos e mesmo assim passamos necessidade", sentencia ele, que vê os produtos ficando cada vez mais escassos. "O camarão-branco, por exemplo, nunca chegou a R$ 60 o quilo e agora está por R$ 100. Isso é porque não tem. A pesca do camarão está parada, não tem nada. A pessoa coloca R$ 50 reais de óleo, vai ali e não pega nada", acrescenta.

Pagamento do seguro-defeso é problema para a categoria


				
					Pescador: a difícil missão de viver entre a terra e o mar
FOTO: felipe brasil

E se ele vinha escasso, a partir deste domingo, 1º, não poderá mais ser pescado. Pelo menos até o próximo dia 15 de maio, época em que acontece o primeiro defeso de 2018. Nesse período, caça, coleta e pesca do sete-barbas, do vila-franca e do camarão-rosa, todos marinhos, ficam vetadas. A medida é adotada duas vezes ao ano - o mesmo se repete entre os dias 1º dezembro e 15 de janeiro.

Além do camarão, a política instaurada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) com o intuito de proteger a reprodução dos animais é válida também para a piracema, pescada no Rio São Francisco, e para as lagostas vermelha e cabo-verde. Nesses casos, as proibições duram seis e três meses, respectivamente - começando em outubro e dezembro.

Entra aí mais uma dificuldade na vida do pescador: receber o seguro-defeso, o benefício pago justamente durante essa temporada. Concedida pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), a pensão totaliza um salário mínimo, atualmente R$ 954, e tem como objetivo permitir que os profissionais consigam se manter enquanto a atividade pesqueira fica proibida para determinadas espécies.

Para quem pega camarão, são repassadas duas parcelas, duas vezes ao ano - totalizando quatro prestações. Em Jaraguá, porém, tem gente com oito pagamentos atrasados. Seu Deca é um deles. "Agora em abril, faz oito parcelas que não recebo. Um rapaz que pesca comigo tem seis, outro tem quatro. É todo mundo assim. É complicado, porque 90% dos pescadores não recebem mais", conta.

Ele diz não saber o motivo da suspensão, mas lamenta o tratamento que tem ao tentar resolvê-la. "Antes era o ministério que pagava. Depois passaram para o INSS e começou esse transtorno. Lá eles dão as costas pra gente, dizem que não recebem pescador. Quando conseguimos alguém pra atender, dizem que o sistema está fora do ar. Saímos de lá sempre com uma mão na frente e outra atrás".

Também sem receber pelo mesmo período, Alex Fernandes da Silva, de 38 anos, se revolta. O jovem esteve no órgão não muito tempo atrás e a explicação que recebeu para o não repasse dos valores causa ainda mais indignação: segundo ele, o instituto alega que os pescadores estão devendo, desde 2006, carnês referentes à aposentadoria - a serem quitados mensalmente com valores que dependem da produção.

"Estou com oito parcelas que eles não pagam, já coloquei até advogado. Vai que eu me acidento, por exemplo, como vai ser? Não posso trabalhar nem tenho esse dinheiro. Tenho três filhos e estou devendo três meses de pensão. São duas meninas e um menino. A gente deixa de pescar e tem que se virar para arrumar comida pra dentro de casa", se aflige Alex.

Presidente da Federação dos Pescadores de Alagoas (Fepeal), Maria Aparecida da Silva aponta que o problema vai além disso. Um conflito no banco de dados do governo federal tem atrapalhado o repasse do seguro-defeso. A questão está, principalmente, em um cadastro feito lá pelos idos de 2004 - devido a uma inconsistência nele, nenhuma das parcelas de 2017 foi processada ainda.

"O de 2017 ninguém recebeu, e tem pescador que não recebe há dois anos. Quando foi feito esse cadastro, só tinha o campo para dizer que se pescava na lagoa, e não no mar. A lei mudou, e quem tem direito ao seguro-defeso, também. No caso do camarão, ele só vale para as espécies marinhas, e aí o INSS consulta e esse cadastro mostra que o pescador pesca no rio. O governo poderia consertar isso, mas não há boa vontade".

Diversas reuniões já foram feitas entre a Confederação Nacional dos Pescadores, a entidade alagoana e a Previdência, mas até agora ainda se aguarda um memorando de Brasília para que tudo seja resolvido. "Falta esse memorando para Alagoas para os pagamentos serem executados. Isso já faz mais de 25 dias. Se viesse de carreta, já tinha chegado, imagina pela internet", protesta Cida.

As reclamações, garante Ana Karla da Silva, técnica do Seguro Social e chefe da Seção de Reconhecimento de Direitos, estão sendo analisadas pelo INSS local. De acordo com ela, os requerimentos estão sendo processados e um prazo para conclusão já teria sido alinhado com a Fepeal. O órgão não dá, no entanto, a versão dele sobre o que está acontecendo de fato para gerar o transtorno aos trabalhadores.

A gerente aponta somente que o benefício é devido aos que exercem a atividade profissional ininterruptamente, de forma artesanal, individualmente ou em regime de economia familiar, durante o período de defeso para a preservação das espécies. "Sabemos que o governo pagou muito seguro-defeso e agora querem enxugar, dar um corte. Mas não é dessa forma, é preciso um alinhamento", opina a presidente da federação.

SEGURO-DEFESO

Para ter direito ao pagamento, o pescador precisa cumprir uma série de exigências impostas pelo INSS: 

>> Ter registro ativo no RGP (Registro Geral de Pesca), emitido com antecedência mínima de um ano, contado da data de requerimento do benefício
>> Possuir a condição de segurado especial unicamente na categoria de pescador profissional artesanal
>> Ter realizado o pagamento da contribuição previdenciária nos doze meses imediatamente anteriores ou desde o último período de defeso até o requerimento, o que for menor
>> Não estar em gozo de nenhum benefício de prestação continuada da Assistência Social ou da Previdência Social, exceto auxílio--acidente e pensão por morte limitados a um salário mínimo, respeitando-se a cota individual
>> Não dispor de qualquer fonte de renda diversa da decorrente da atividade pesqueira referente às espécies objeto do defeso

Entre o preconceito e o alcoolismo


				
					Pescador: a difícil missão de viver entre a terra e o mar
FOTO: felipe brasil

Ao contrário do que já cantava Dorival Caymmi em O Bem do Mar, icônica canção gravada em 1954 onde ele fala dos dois amores do pescador - "um bem na terra, um bem no mar" -, os bons sentimentos por quem vive para tirar o alimento das águas parecem ficar apenas lá no azul do oceano. Na costa, são mesmo o preconceito e a segregação que mostram mais as caras, como contam os próprios trabalhadores. A sensação é de desprestígio.

"A profissão de pescador é tratada que nem tratam um cachorro. A gente aqui [dentro da comunidade de Jaraguá] ainda está bem, mas quando sai é tratado como um cachorro, até pior. Quando a gente diz a profissão, diz que pesca, não tem valor de nada; a gente é menosprezado. Eu mesmo não vou querer minha filha fazendo isso. Quero que ela tenha um futuro bem melhor", relata Alex Fernandes da Silva.

Morador do Conjunto Carminha, no Benedito Bentes, e despejado de onde nasceu, ele ainda não superou o fim da vila por tantos anos encravada na paisagem do litoral maceioense. Principalmente diante de tudo que foi dito sobre quem passou a vida inteira por ali, abastecendo de pescado o resto da cidade - o local era tratado como ponto de drogas e de prostituição pela administração pública e por parte da população.

"Diziam um monte de coisa do Jaraguá, mas não era daquele jeito, não. Queria saber por que esse preconceito todo com a gente", afirma. "Me senti muito triste. Tiraram a gente de lá e não ganhei apartamento no Trapiche, então me mudei para o Carminha. Dificultou demais. Acordo às 4h para estar aqui às 6h. O gasto também é grande. Pra tirar a gente foi meio mundo de polícia, mas cadê o governo na hora de ajudar?"

José João Justino, o seu Deca, também nega que a comunidade fosse composta apenas "do que não presta". "Pra onde você for, tem droga, tem crime. O pessoal da prefeitura uma época falou isso, que aqui só tinha traficante, mas não era assim. Aqui tinha muita gente trabalhadora. Até tinha uma meia dúzia metida com isso, mas a maioria era trabalhador, gente que depende da pesca", afirma ele, que hoje vive no Trapiche.

Além do medo devido a essa imagem enraizada, o esgoto que corre a céu aberto na frente dos barracos que ainda restaram por lá é outro ponto que contribui para reforçar o isolamento. Quem entra por ali, desabafa Alex, costuma prender a respiração - fazendo aquele clássico gesto de colocar a mão sobre o nariz. Turistas também nem pensam em conhecer a balança de peixe da Praia da Avenida ou a realidade local.

"Todo mundo fala do esgoto, mas a gente já não liga mais. Estamos acostumados. Graças a Deus nunca fiquei doente, mas é claro que queríamos que fizessem alguma coisa. Queria que isso aqui fosse bem bonito para os turistas virem aqui, pra perguntarem como é nosso lugar, como a gente foi criado. Agora eles não vêm por causa dessa poluição, de ser tudo abandonado", lamenta.

Antropóloga, a professora Rachel Rocha explica que a realidade choca. "Quando a imagem de Maceió é vendida como destino turístico, são as belas praias, a gastronomia, os hotéis e até mesmo o pescador que entram em relevo, mas o pescador real, no seu cotidiano, ainda que habite o imaginário da Maceió paradisíaca, não escapa à categorização social, ou seja, continua vítima de preconceitos conforme sua condição social, de cor, de idade, gênero etc".

Também antropólogo e um dos maiores pesquisadores sobre temas de Alagoas, Sávio de Almeida revela ainda outras questões para a discriminação - que não só a pesca. "Primeiro, antes de serem pescadores, são pobres e, muitos, negros. Segundo, cachaça de pobre sempre incomoda, enquanto a de rico termina em alguns tipos de coluna social. O preconceito existe e existirá, mas não acho que por serem pescadores", diz.

Alcoolismo ainda é bem presente

Problemas com bebidas alcoólicas, aliás, continuam rotineiros em comunidades pesqueiras ao longo do litoral alagoano. O que seria o escape do fim de semana acaba virando rotina diária e atrapalhando não só as atividades profissionais, mas também o cotidiano dos trabalhadores. Arnaldo dos Santos, o Baiano, lembra que tem companheiro que bebe todo santo dia.

"Tem gente que é a semana todinha bebendo. Também tem aqueles que, se o dono do barco não arrumar um dinheiro, que a gente chama de vale, não vai trabalhar. É R$ 40, R$ 50, R$ 60 para comprar o cigarro e a bebida. Alguns deles só saem para a maré quando têm um vale. Quando não vão, ficam esperando o colega chegar pra pedir um peixe. Aí ganha um quilo de um, um quilo de outro, vende e vai beber".


				
					Pescador: a difícil missão de viver entre a terra e o mar
FOTO: felipe brasil

Ir para o mar alcoolizado, porém, é proibido pela Marinha e costuma ser um dos pontos mais fiscalizados quando a Capitania dos Portos de Alagoas aparece - gerando a aplicação de multa para os responsáveis pela embarcação. Por isso mesmo, proprietários de barcos terminam por proibir que colegas nessa situação embarquem, o que muitas vezes impede que todo o grupo vá para a água.

Quem costuma controlar a situação são as esposas ou, às vezes, os próprios filhos. Acaba com a família a tarefa de frear a bebedeira. "No sábado é o dia do pescador receber o dinheirinho que fez na semana, e se não vier a esposa ou um filho, tem gente que gasta tudinho. A maioria delas vem atrás dos maridos pra eles não gastarem, mas tem as que ajudam a beber. Boa parte trabalha aqui mesmo, é beneficiadora dos produtos, descasca camarão, faz filé, trata peixe", aponta Arnaldo.

Mesmo puxando pela memória, ele não se recorda de ações encabeçadas por órgãos oficiais ou por entidades não governamentais para alertar sobre o perigo do alcoolismo. Em Jaraguá, onde mora o trabalhador, atividades do tipo são praticamente inexistentes - na época do defeso, a Assistência Social geralmente aparecer por lá, mas bebida não costuma estar entre os tópicos tratados por eles.

Presidente da Federação dos Pescadores de Alagoas, Maria Aparecida reconhece a situação, mas acredita que ela tem se atenuado nos últimos tempos. "Não temos muito o que fazer. Tem daqueles que descem da embarcação e já chegam em casa sem um centavo. Isso não são todos; hoje já existe um bom número que não bebe. Mas qualquer comunidade do tipo, uma comunidade rural, por exemplo, tem esse tipo de questão".

Segurança é preocupação, mas fiscalização está parada


				
					Pescador: a difícil missão de viver entre a terra e o mar
FOTO: felipe brasil

E não só a bebida é problema na hora de embarcar. A segurança dos trabalhadores parece ser outra preocupação, principalmente para órgãos responsáveis por manter tudo conforme pede a lei, como é o caso do Ministério do Trabalho. Nem sempre, porém, as normas são seguidas, e até o básico que é exigido - coletes e boias para todos os tripulantes - acaba negligenciado.

"Nosso equipamento de proteção é só Deus. A gente relaxa. Alguns barcos ainda têm colete, boia circular. Mas às vezes não é suficiente para a quantidade de pessoas. Na semana passada aconteceu um acidente na Pajuçara; o navio torou um barco, mas os pescadores não sofreram nada, e a proprietária vai receber uma indenização. Mas um dia desses teve um na Barra de São Miguel e morreram dois".

Pelo menos no papel, essa rotina não passa despercebida por quem tem a competência de fiscalizar as relações de trabalho. Sim, o pescador também tem direitos assegurados para uma jornada digna e uma aposentadoria justa, como explica o coordenador das Atividades de Fiscalização do Trabalho Portuário e Aquaviário em Alagoas, o auditor--fiscal do Trabalho Cesar dos Santos Fontoura Marques.

Segundo ele, não há grande diferença entre o ambiente no qual esse profissional está inserido e o dos demais, compartilhado por trabalhadores de outras atividades econômicas. O fiscal cita a NR-30 [Norma Regulamentadora nº 30] como sendo o principal instrumento utilizado para direcionar as fiscalizações na pesca.

"Deve [o ambiente de trabalho] ter as mesmas condições de saúde e segurança dos demais. Além da NR-30, também há o disposto na Convenção da OIT [Organização Internacional do Trabalho] n.º 147 - Normas Mínimas para Marinha Mercante, que engloba pesca industrial, comercial e artesanal e estabelece as disposições mínimas de segurança e saúde no trabalho a bordo dessas embarcações inscritas em órgão da autoridade marítima e licenciadas pelo órgão competente", explica.

Cesar acrescenta que há uma preocupação das instituições em relação aos pescadores. E motivos não faltam, já que a lista de riscos é grande. Entre eles, está o relatado por Baiano: a possibilidade de esquecer de levar, a bordo, os meios de salvamento e sobrevivência, que são, conforme relaciona o auditor-fiscal, essenciais para situações determinantes entre a vida e morte.

Ele também considera importante que os profissionais, que estão sujeitos a acidentes como quedas com o balanço da maré e explosões do barco, observem com mais cautela as instalações elétricas da embarcação e evitem a ausência de fonte de energia de emergência e de proteção nas partes móveis das máquinas.

As ameaças constantes e a preocupação dos órgãos não garantem, porém, que ações efetivas sejam colocadas em prática. Cesar admite que a atividade pesqueira não vem sendo fiscalizada nos últimos anos, e o motivo é a falta de pessoal: há somente um auditor-fiscal para inspecionar todos os operadores portuários e navios de grande porte que ancoram em Alagoas - atividades que produzem maior risco -, inviabilizando, assim, ações voltadas para os menores.

Uma situação que reflete diretamente na realidade. "Nem sempre a gente cumpre o que precisa. Às vezes está faltando tripulante, e a gente vai assim mesmo. A Capitania dos Portos não está aqui todo dia. Apesar de não dar um quilômetro pra Capitania, raramente eles vêm aqui. De resto, ninguém vem fiscalizar também, não. No início até vinham, mas depois pararam", confirma Baiano.

Apesar do relato dos trabalhadores, o auditor-fiscal conta que um grupo móvel, o GMPA, reúne representantes do Ministério do Trabalho de diversos estados para a realização de ações planejadas. Problemas já relatados, como a insuficiência de meios de salvamento, foram detectados, além de outros, a exemplo da falta de registro em carteira de trabalho, de condições sanitárias a bordo e de condições de navegabilidade.

MPT atua quando há vínculo do pescador


				
					Pescador: a difícil missão de viver entre a terra e o mar
FOTO: Felipe Brasil

Atuando em outras atividades econômicas, o Ministério Público do Trabalho (MPT) fica de mãos atadas quando o assunto são os pescadores artesanais. Isso porque, em uma profissão executada por famílias e sem qualquer relação com uma empresa, processos que correm no órgão ficam prejudicados. A atuação acaba restrita, salvo para os que estão associados em colônias - estes podem recorrer à instituição para denunciar direitos não contemplados ou danos à segurança e à saúde.

O procurador-chefe do MPT em Alagoas, Rafael Gazzaneo, explica que a ausência da relação com um empregador costuma tornar inviáveis ações judiciais de responsabilidade. Ainda assim, vasculhando os arquivos de denúncias, o gestor encontrou alguns processos, todos arquivados, relativos a irregularidades cometidas contra esses trabalhadores.

Um deles já soma mais de dez anos: uma ação realizada na Praia do Peba, em Piaçabuçu, para combater o trabalho infantil. Na ocasião, crianças e adolescentes foram flagrados atuando no processo de defumação de camarão em fabriquetas com condições análogas à escravidão. Os menores ficavam expostos a altas temperaturas de um forno sem estrutura para funcionar. E o pior: sem qualquer equipamento de proteção.

Já em 2015, a Procuradoria Regional do Trabalho recebeu outra denúncia, desta vez contra a Colônia de Pescadores Z-15, que fica em Maragogi: proprietários de embarcações estariam exigindo 50% dos benefícios pagos a título de seguro-desemprego como condição para a entrega de documentos necessários para obtenção do Registro Geral da Embarcação (RGE) e do Título de Inscrição da Embarcação (TIE).

O representante legal da colônia foi ouvido e negou a prática. Entre as alegações, ele reforçou que a associação não teria responsabilidade legal de emitir os documentos. Uma inspeção foi feita no local, e os pescadores relataram que a situação teve fim depois da denúncia formulada e da fiscalização de auditores-fiscais do Trabalho. Com isso, o inquérito foi arquivado.

A presidente da Federação dos Pescadores reclama da falta de atenção dos órgãos que seriam competentes. "Hoje não temos política pública para a pesca. Até nossos documentos estão parados. Desde 2012 está parado o andamento do Registro Geral de Pesca, que serve para identificar o pescador. Desde a presidente Dilma que a pesca roda. Primeiro acabaram o Ministério da Pesca e colocaram no MDIC [Indústria, Comércio Exterior e Serviço], na Agricultura, na Casa Civil, e a gente jogado", diz Aparecida.

Profissão pode desaparecer


				
					Pescador: a difícil missão de viver entre a terra e o mar
FOTO: felipe brasil

Há 36 anos em atividade, o pescador José João Justino tem orgulho do que faz. Tanto que tentou passar adiante o interesse pela profissão. Dos seis filhos que divide com as duas mulheres com as quais já foi casado - um dos relacionamentos ainda está de pé -, dois se interessaram pelo trabalho e hoje vão para o mar junto com o pai, na rotina de cinco dias viajando e dois em terra firme.

A realidade, porém, é bem diferente da compartilhada pela maioria das famílias de comunidades pesqueiras. Agora com mais oportunidades de estudo e diante das as dificuldades enfrentadas pelos patriarcas, gerações mais novas têm se recusado a seguir na pesca artesanal. Em Jaraguá tem sido assim, como atesta o próprio Deca.

"Acho que está diminuindo o número de pescadores. Esse pessoal mais antigo está saindo e às vezes não tem outro para repor. Não sei mais quantos pescadores tem aqui, mas acho que são uns 200. Antes era bem mais. Talvez daqui a um tempo não tenha mais pescador em Maceió. Acho que é porque a vida é difícil", diz.

Colega de profissão, Arnaldo dos Santos, o Baiano, também vê a coisa com os mesmos olhos. "Está diminuindo tanto a quantidade de pescadores quanto a produção. Essa geração nova não se interessa em pescar. Quando a gente era criança, ia ajudar nossos pais, mas a turma nova não quer".

A queda tem sido sentida na Federação de Pescadores de Alagoas. Segundo Maria Aparecida da Silva, presidente da entidade, alguns motivos podem esclarecer o cenário. Um deles é que, atualmente, para ser considerado pescador e receber benefícios, é necessário se dedicar exclusivamente ao mar.

"Você não pode estar somente na venda, por exemplo. Além disso, o jovem hoje quer fazer uma faculdade. Temos vários filhos de pescadores formados. E não existe interesse de formar cidadãos para a pesca. Não tem aqui uma escola de ensino de pesca. Antigamente tínhamos uma na Barra de Santo Antônio, mas foi desativada".

Vinda de uma família intimamente ligada à profissão - os cinco tios, dois irmãos e o falecido marido se dedicavam à atividade -, ela conta que a filha não deve seguir o caminho. "Minha filha nunca quis se envolver. Nossos filhos não querem ser maltratados pelo governo como temos sido. Acho que corre o risco de o pescador ficar somente no papel e na memória", completa.

A antropóloga Rachel Rocha explica que o desaparecimento de certas tradições está associado diretamente com o fim dos suportes materiais que orientam suas práticas - no caso dos pescadores, a escassez do pescado e a dificuldade de manter uma sobrevivência a partir dele.

"A diminuição do número de pescadores representa um declínio da própria atividade ou ao menos de sua transformação, e isso, é claro, se associa com o declínio do próprio pescado. Observe o Rio São Francisco, por exemplo. As pessoas não abandonam a pesca ou se desinteressam dela. O que acontece é que ?o mar não está pra peixe?".

Apesar do sentimento dos pescadores, o também professor Sávio de Almeida tem uma visão mais otimista. "É natural que o chamado progresso desloque profissões, mas isso não significa que acabe com elas. Na verdade, novos incentivos aparecem para os jovens, e é natural que a sofisticação com que a sociedade vai se montando atinja novos níveis de aspiração. Mas nada de acabar; reduzir, eu suponho que sim".

Realizado em 2008 pela Ufal, o Mapeamento do Patrimônio Imaterial de Alagoas mostra a pesca como segunda atividade mais importante do Estado. A diversidade é tanta que o estudo conseguiu listar 18 diferentes tipos de atividade pesqueira.

Informações que mostram a importância da figura no imaginário popular. "Para mim, ele é um profundo conhecedor do que é invisível, especialmente da geografia do mar. Venho, por anos, anotando o que sabem. Convivo bem de perto com alguns e sou um grande admirador da profundidade de conhecimento que têm, especialmente da arte de navegar e ser íntimo de mistérios", revela Sávio.

Mesmo com a beleza, para quem vive nas águas, a realidade continua a castigar. "A pesca, nessa idade, é praticamente tudo. Mas se eu pudesse, saía. Se tivesse um meio de trabalhar em terra sem precisar me maltratar tanto, eu já tinha deixado", diz Baiano, enquanto arruma cuidadosamente alguns sacos de gelo e a comida, companheiros para o próximo encontro com o mar.

Aposentadoria do pescador artesanal é diferenciada


				
					Pescador: a difícil missão de viver entre a terra e o mar
FOTO: felipe brasil

Após anos de contribuição e esforço físico quase que diário, todo trabalhador aguarda com ansiedade o instante de "pendurar as chuteiras". No caso dos pescadores, é preciso ter 60 anos de idade, 15 de contribuição previdenciária e 15 de colônia para os homens e 55 de idade e o mesmo de contribuição para as mulheres.

Segundo a técnica do Seguro Social e chefe da Seção de Reconhecimento de Direitos do INSS Alagoas, Ana Karla da Silva, a concessão do benefício muda na forma de comprovação. "No caso do pescador artesanal enquadrado como segurado especial, a forma de comprovação da carência se dá com o exercício da atividade. Para os demais pescadores, a carência é verificada a partir das contribuições", detalha.

O órgão não revela quantos trabalhadores da atividade pesqueira conseguiram se aposentar nos últimos anos, mas ressalta que os direitos previdenciários deles são os mesmos dos demais trabalhadores - incluídos aí aposentadoria por invalidez, salário-maternidade, pensão por morte e auxílios reclusão, doença e acidente.

Seguro-defeso deve passar por mudanças, avalia corretor


				
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FOTO: felipe brasil

O corretor de seguros Djaildo Almeida explicou que o seguro-defeso é importante por ter uma conotação social - atende ao pescador em uma situação de impossibilidade de exercer a atividade devido à proibição da pesca de algumas espécies. No entanto, assim como outros seguros sociais, precisaria de uma reanálise, segundo opina.

"O seguro-defeso tem pré-requisitos a serem respeitados para que o trabalhador receba um valor mensal no período em que ficar parado. Porém, é válido que ele, para atender melhor a sociedade, passe por uma modificação, tanto no processo como no valor da indenização. O que preocupa, no entanto, é se desburocratizar o processo, as fraudes poderão aumentar. Para evitá-las, o governo federal precisará adotar medidas que inibam tais práticas", avalia.

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