Um transporte arriscado e perigoso, no qual os passageiros são levados de um canto a outro como se fossem mercadorias, sem nenhum tipo de segurança, soltos em bancos de madeira e em meio a animais, sacolas de feira e outros objetos. Apesar de proibido, o uso das carrocerias de caminhões para o deslocamento de pessoas - conhecido popularmente como pau de arara - ainda é muito comum em cidades do interior de Alagoas, inclusive com a conivência do poder público. São estudantes e outros moradores de pequenas cidades que enfrentam o desconforto e o medo por não terem outras alternativas de transporte disponíveis.
Os flagrantes podem ser feitos em muitas estradas vicinais e até em rodovias, em especial nas que ficam situadas na região do Sertão, onde as dificuldades de acesso a ônibus e outros meios mais dignos de transporte são bem maiores. Em dias de feira, os caminhões chegam a formar filas nos "pontos" de chegada e partida e o sobe e desce das carrocerias torna-se cena comum. Mas isso não se repete só no Sertão. No Agreste, em cidades como Arapiraca e São Sebastião, por exemplo, os paus de arara também invadem as ruas.
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Enraizado na cultura popular do nordestino e cantado por ícones da música brasileira como Luiz Gonzaga, esse tipo de transporte não se enquadra no Código Brasileiro de Trânsito e já deveria ter sido extinto. A resistência tem custado caro e colocado a vida de muitas pessoas em risco, inclusive de crianças. O último acidente envolvendo pau de arara em Alagoas foi registrado no mês de julho, na zona rural da cidade de Joaquim Gomes. Na ocasião, um caminhão que levava estudantes para a escola tombou e deixou feridos. Um pouco mais distante, no estado do Piauí, outro acidente ocorrido este ano, no mês de junho, em uma rodovia local, deixou cinco pessoas mortas.

Os órgãos de fiscalização - como o Departamento Estadual de Trânsito (Detran) e a Agência Reguladora de Serviços de Alagoas (Arsal) - reconhecem o problema e prometem apertar o cerco em torno da proibição efetiva deste tipo de transporte, mesmo sabendo que não será uma missão fácil, já que por muitas décadas o pau de arara foi o principal meio de condução de muitas pessoas.
Em Arapiraca, segunda maior cidade de Alagoas e a mais importante do interior, pode-se observar dezenas de caminhões e caminhonetes circulando livremente pelas ruas, principalmente às segundas-feiras, quando acontece a principal feira livre da localidade. Os veículos vêm de cidades das regiões do Baixo São Francisco, Agreste e Sertão, mas na Zona da Mata também é utilizado até mesmo como o único meio de transporte existente, como é o caso do município de Pindoba.
FORA DE CONTROLE
A direção da Agência Reguladora de Serviços Públicos de Alagoas (Arsal), responsável pela fiscalização do transporte de passageiros, afirma coibir a condução de pessoas nas carrocerias dos veículos, mas reconhece dificuldades para manter o controle das normas de trânsito. A presidente em exercício do órgão, Patrícia Medeiros, considera que as pessoas que utilizam esse meio de transporte devem se preocupar com a própria segurança.
Ela destaca também que, em casos onde não seja ofertado transporte complementar em carros tipo vans e micro-ônibus entre cidades, a comunidade deve informar à agência, para que a mesma abra concessão à criação de linhas regulares. O problema é que, na maioria dos casos, os paus de arara circulam por áreas rurais, onde os transportadores regulares se negam a trafegar, principalmente devido às condições das estradas, notadamente em épocas de chuvas.
"Esses veículos são desenhados para o transporte de cargas. Nossa preocupação é com a segurança das pessoas, devido à possibilidade de acidentes e ao risco do passageiro ser arremessado para fora do veículo. A população às vezes fica contra a Agência, por não entender a situação. Realmente a gente sabe que eles circulam por várias cidades e não temos como cobrir todas elas", reconhece a presidente da Arsal.

ÚNICA ALTERNATIVA DE TRANSPORTE NO INTERIOR
Um dos casos emblemáticos do uso do pau de arara como meio de transporte é Pindoba, a cidade de Alagoas com menor número de habitantes, conforme dados do IBGE. Mesmo que algum morador optasse por usar o transporte complementar por lá, não teria como, pois nenhum ônibus ou van circula pela localidade, devido ao difícil acesso por estrada de barro. São 13 km de via, a partir da BR-316, até o portal de entrada da cidade.
"Aqui não tem condições de rodar ônibus. As estradas não ajudam. A última empresa que fez linha por aqui deixou a cidade há mais de 10 anos por conta dessa situação", conta o aposentado José Neto.
Com isso, submeter-se ao transporte em carroceria de caminhão é a única alternativa.
"É o que temos. É o único meio de transporte. Realmente, andar em cima de um pau de arara não é nada confortável", acrescenta Paulo Sérgio Silva, morador da cidade. "As estradas não oferecem condições", justifica Merquides Borges Alves, um dos motoristas que atuam entre os municípios de Pindoba e Viçosa. Ele reconhece que a lei proíbe o transporte de passageiros em caminhões como o dele, mas ressalta que, na carroceria do veículo, além das pessoas, é possível "carregar cimento, farinha e outros produtos que não são transportados nos ônibus".
E nas regiões do Agreste e Sertão de Alagoas, o transporte de passageiros em carrocerias de caminhões e caminhonetes é mais comum do que muita gente imagina. Dependendo da localidade onde se more, não há outra opção a não ser enfrentar o desconforto e a falta de segurança de viajar num pau de arara. Quem mora na zona rural de Coité do Nóia também se vê diante desta realidade toda vez que precisa fazer compras na feira de Arapiraca, cidade que serve de ponto de abastecimento para as demais localidades.

"Os caminhões vão para a zona rural pegar a gente", revela Jéssica Almeida, moradora do povoado Alagoinhas, em Coité do Nóia. Ela paga R$ 10 na passagem de ida e volta para se deslocar até a feira de Arapiraca. "Vamos fazer o quê?" questiona Damaciano Aureliano, que mora na mesma comunidade e se considera sem alternativa de transporte. Eles contam que, no sítio onde moram, produzem apenas o básico para alimentação e por isso precisam se dirigir até a feira livre arapiraquense, nos dias de segunda-feira, para adquirir os demais produtos indispensáveis ao dia a dia.
"O sítio está esquecido. Temos muitas dificuldades. Não passa transporte certo. A gente que é da roça sofre um pouco", lamentava Neuza Alexandre, moradora do povoado Poço da Abelha, enquanto se preparava para retornar à sua cidade na companhia de uma criança e de uma senhora.
Para o carroceiro Givaldo da Silva, que trabalha na atividade desde os 8 anos de idade, a ida de moradores de outras cidades em caminhões e caminhonetes para fazer feira em Arapiraca é o que garante o rendimento e a sobrevivência dele, que cobra valores entre R$ 5 e R$ 10 para levar vários tipos de mercadorias do local da compra até onde os veículos ficam estacionados, na rua Manoel Ângelo Tavares, no bairro Baixão.
E como não há restrições para o transporte de mercadorias em meio às pessoas, o agricultor Anastácio Barbosa, morador do Sítio Branquinha, nas proximidades de Taquarana, aproveitou para levar no pau de arara os três carneiros que tinha acabado de comprar por R$ 100 cada um, para criá-los na roça e depois revendê-los, após cinco meses de cuidados, por aproximadamente R$ 400 por animal. "Viajar no caminhão é bom, porque pega a gente na porta de casa", enfatizou.
"PAU DE ARARA É ABOMINÁVEL E NOCIVO"

O diretor-presidente do Departamento Estadual de Trânsito de Alagoas (Detran/AL), Antônio Carlos Gouveia, também reconhece o problema e justifica a presença do pau de arara como um dos principais meios de transportes em determinadas comunidades do interior do estado, como sendo uma questão cultural. No entanto, ele afirma que esta situação não pode mais continuar e que é preciso reforçar a fiscalização nas rodovias e punir os condutores deste tipo de veículo.
"O pau de arara é absolutamente irregular, mas foi criado em um ambiente de costumes. Existe uma regra de trânsito que diz que o veículo, para transportar passageiros, precisa oferecer segurança por meio do cinto, da cadeira e até do airbag. O pau de arara é abominável e nocivo, contrário a toda e qualquer lógica de condução de pessoas", afirmou.
Para o diretor do Detran, a segurança dos passageiros deve estar em primeiro lugar. "Se houver qualquer vacilo do motorista e acontecer o tombamento do caminhão, a chance de uma pessoa vir a óbito ou ficar com paralisia permanente é gigantesca. Mas o costume consolidou esse tipo de transporte, principalmente nas regiões do Sertão e do Agreste", observa.
"Nós reconhecemos que o transporte, para ser seguro, tem de ter condições e regras. Um caminhão desses é absolutamente contrário, mas eu também não posso criar um problema de um dia para a noite. Não podemos deixar os estudantes e a população de um modo geral desassistidos. Por isso, teremos que criar ambientes de segurança e estabelecer um prazo para que esses veículos possam ser substituídos por algo mais seguro", completa.

TRANSPORTE ESCOLAR
Uma das preocupações dos órgãos fiscalizadores diz respeito ao transporte de estudantes feito por meio de paus de arara que saem da zona rural em direção às escolas situadas nos centros urbanos. Trafegando por estradas em situação precária, em especial no período chuvoso, os alunos precisam se segurar para não cair e conseguir chegar ilesos à sala de aula.
O Ministério Público Estadual (MPE) está ciente desse problema e já vem tratando da situação do transporte escolar como um todo - o que inclui os paus de arara - junto ao Detran/AL.
"Essa cultura do pau de arara tem que acabar. É determinação legal e a lei tem que ser cumprida. O transporte de crianças em carrocerias de caminhões é proibido", enfatiza o promotor Ubirajara Ramos, da 44ª Promotoria de Justiça da Capital.
Para se ter uma ideia da gravidade do problema, Cacá Gouveia contou que, em recente reunião com o prefeito do município de Capela, foi relatado ao gestor que o serviço de inteligência do Detran havia flagrado quatro caminhões paus de arara fazendo o transporte de alunos. "Nossos agentes observaram um ambiente de extremo risco, com os jovens em bancos de madeiras e muitos deles em pé. Por alto, foi possível contabilizar cerca de 70 estudantes por veículo", contou. No encontro, o prefeito de Capela justificou a situação dizendo que este é o único tipo de veículo capaz de chegar a determinadas localidades do município para buscar os alunos.

Os riscos são iminentes. A prova disso foi um acidente que aconteceu no mês de julho envolvendo um caminhão pau de arara que transportava estudantes de um povoado da cidade de Joaquim Gomes. Por conta das fortes chuvas e da estrada escorregadia, o veículo tombou deixando os alunos assustados e um deles ferido.
Secretária de educação da cidade, Fátima Pereira revelou que o município sempre soube da proibição de transportar alunos em paus de arara, no entanto, ela também afirma que não há alternativa para o transporte de estudantes que residem em locais distantes. "Depois do acidente, a promotoria de justiça proibiu terminantemente este tipo de transporte, com isso, cerca de 250 alunos das redes municipal e estadual de ensino deixaram de frequentar a escola, pois eles não têm como chegar", explica.
Para minimizar a situação, a gestora da pasta municipal de educação informou que o município começou a desenvolver um projeto de escola itinerante, por meio do qual, uma vez por semana, os professores vão até um determinado polo e ministram um resumo de todas as aulas que seriam vistas durante o período normal de estudos.
Diante de todas estas situações de riscos para a população, não há alternativa a não ser uma fiscalização mais rígida e punições efetivas. "Eu posso assegurar que em um curto prazo todos os órgãos de trânsito vão começar a proibir o pau de arara. O condutor que desrespeitar as normas será responsabilizado, inclusive, criminalmente. Infelizmente, ainda existem situações como estas porque a legislação brasileira é muito branda em relação aos crimes de trânsito. É preciso que ela se torne mais dura. Vamos conversar com as prefeituras e elas terão que arrumar outras formas de transportar os estudantes e a população. Para isso, vamos contar com o apoio dos órgãos como a Arsal, o Dnit e o DER", destacou o diretor do Detran.
RODOVIAS FEDERAIS
Enquanto o problema é evidente e os flagrantes são constantes nas estradas que cortam várias cidades de Alagoas, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) destaca que "há muito tempo" os paus de arara não são vistos em trechos de rodovias federais do estado.
Segundo a assessoria de comunicação do órgão, há alguns anos a fiscalização foi reforçada e muitos condutores que transportavam pessoas nas carrocerias de seus veículos foram autuados, em especial na cidade de Palmeira dos Índios e na região do Sertão, o que teria resultado na mudança de comportamento por parte das pessoas que trabalhavam com esse tipo de transporte.
"Muitos deles chegaram a vender os carros que tinham e compraram vans para passar a fazer o transporte de forma correta. O pau de arara é totalmente proibido porque leva pessoas no compartimento de cargas do veículo, sem cinto de segurança e outras recomendações básicas do CTB", informa a assessoria do órgão.
Apesar de o pau de arara não ser mais flagrado em rodovias federais do estado, os números da PRF mostram que pessoas ainda são transportadas nas BRs, de forma aleatória, em carrocerias de caminhonetes e caminhões. Só em 2016, foram contabilizados 258 casos referentes a esse tipo de infração em Alagoas.

"INTERVENÇÃO POLÍTICA"
Já o chefe da Fiscalização de Trânsito do Departamento de Estradas de Rodagem (DER), Ednaldo Alves, afirmou que as fiscalizações são feitas e muitos são os condutores multados nas rodovias estaduais. Ele ressaltou, porém, que acabar com a circulação de paus de arara em Alagoas é uma missão quase impossível, tendo em vista a resistência das pessoas e, muitas vezes, as interferências políticas, que acabam prejudicando o trabalho realizado para coibir esse tipo de transporte irregular.
"Nós fiscalizamos, fazemos as abordagens, multamos o condutor e mandamos as pessoas descerem dos veículos. Isso é muito comum em dias de feira nas cidades. Mas além da resistência das pessoas, temos que enfrentar também a interferência política. Quando isso acontece, preferimos nos retirar do local, porque se é para punir, vamos punir a todos e não só alguns. Quando um político quer interferir na fiscalização, nos ausentamos para evitar um problema maior", revela Ednaldo.
Ele ressalta que o transporte em compartimentos de carga é uma infração gravíssima, passível de multa e apreensão. Mesmo assim, o recolhimento dos veículos só é realizado pelo DER nos casos em que eles não apresentam condições de segurança - como pneus 'carecas' e carga irregular, com peso maior que o permitido.
RESPOSTAS DAS PREFEITURAS
Apesar de a reportagem ter filmado vários caminhões paus de arara em Arapiraca, mais especificamente na Rua Manoel Ângelo Tavares, no bairro Baixão [confira no vídeo acima], o gerente de transportes e fiscalização da cidade, Ailton Pereira, afirmou que há fiscalização em todo o município, destacando que, se algum flagrante for feito, o condutor será autuado e o carro apreendido e levado para o 3º Batalhão de Polícia Militar (3º BPM). Ele informou também que, fora do perímetro municipal, não há fiscalização da SMTT e sim do DER, ressaltando que desde 1998 esse tipo de transporte é proibido.
Já o prefeito da cidade de Coité do Nóia, José de Sena Netto, disse ter conhecimento de que "alguns carros circulam pela cidade", mas afirmou que o município não faz a fiscalização, que é de responsabilidade da Arsal e do DER.
A reportagem também tentou contato com o prefeito de Pindoba, mas as ligações não foram atendidas.