"Eu sou do tempo que as crianças brincavam nas ruas de barro, que carro era coisa de luxo, que dava para ver as estrelas, porque não tinha tanta luz. Tudo mudou, hoje é muito diferente. Muitos edifícios, as ruas asfaltadas, tanto carro na rua. Na minha época, não tinha nada disso". É assim que dona Jandyra Amorim, nascida no dia 31 de janeiro de 1935, vai lembrando as histórias vividas no estado. No dia 16 de setembro, Alagoas comemora 200 anos de Emancipação Política e aGazetaweb aproveitou a data para conversar com alguns moradores que têm muita história para contar.
A contação de histórias é uma maneira de propagar a cultura dos povos. Ouvir histórias é conhecer um novo lugar pelos olhos do contador. É descobrir que, lá em 1914, Maceió ganhou o primeiro bonde elétrico, sendo a terceira cidade do país a contar com a linha. Naquele tempo a areia da praia cobria grande parte do Jaraguá, chegava ao coreto. É aprender que em 1938, as cabeças de Lampião e seu bando percorreram as cidades alagoanas e foram expostas na antiga Praça da Cadeia, em frente ao Quartel da Polícia Militar. E descobrir uma Alagoas bem diferente da atual.
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Brincadeiras na rua
Se atualmente as brincadeiras estão cada vez mais ligas aos equipamentos digitais e tecnológicos, Jandyra relembra que quando criança morava na Rua 7 de setembro, no Centro, e a diversão era brincar na porta de casa. "A rua era de barro, uma poeira só. As casas tinham calçadas altas e, depois que minha mãe me dava o banho da tarde, ficava sentada, balançando as pernas. Ou então, ficava com as amigas pulando corda de um lado ao outro da rua".
Ela sorri ao lembrar a bronca que recebia da mãe por ficar coberta de barro. Outra lembrança que está bem viva na cabeça de dona Jandyra é da Praia da Avenida. "O mar ficava tão longe, a areia chegava ao coreto. Mas a gente nem via o mar".
Mas o mar permeia muitas lembranças da moradora. Ela conta que aos domingos, as pessoas reuniam as famílias e seguiam para a praia, aproveitando os passeios de bonde, que percorria a Pajuçara e Ponta da Terra, passava pelos sítios do Farol, Bebedouro, Mangabeiras e o Trapiche da Barra. "Nesses dias, as pessoas andavam em trajes de passeio. Mas tinha gente que ia a pé e já iam de maiô para passar as tardes nas praias. Tinha muita areia e coqueiro, mas eu não era de ir muito. Só que o mar sempre foi lindo".
Viagens
Apesar de ter nascido em Maceió, Jandyra considera que é filha das terras de Santa Luzia do Norte. A família nasceu lá e em vários momentos da vida, ela morou na cidade. Como os automóveis eram poucos, ela relembra que quando as viagens entre as cidades eram de trem e a pé. "Mesmo nas praças de carros de aluguel não tinham tantos carros. A gente ia de trem até um ponto e depois ia andando. Às vezes, levava a feira do mês na cabeça".
Por conta da dificuldade de locomoção, Jandyra passou um período estudando em um internato de Maceió. Era o Colégio São José. "Estudei lá a minha vida toda. Tenho muita saudade daquela época, das irmãs".

Os cinemas
Jandyra conta que, já na adolescência, as brincadeiras na rua foram substituídas pelas idas ao cinema. Os cinemas de bairro começaram a chegar à capital alagoana nos anos 30, sendo o Cine Glória, que posteriormente ganhou o nome de Cine Rex, o primeiro deles. Na época, outros começaram a surgir, nomes como Cine Plaza, Cine Lux, Imperial, São Luiz, Ideal, Royal estão gravados na memória de muitos alagoanos.
"Naquela época existia a matinê, que eram as sessões da tarde, e a soirée, que eram sessões à noite. As mulheres se arrumavam para ir para o cinema, com chapéus e leques. Depois da sessão, a gente ia tomar sorvete", relembra Jandyra.
O pensionato
"Quando já estava na faculdade, minha mãe tinha voltado a morar em Santa Luzia e eu tinha que ir toda semana para levar a feira", conta. Ela comenta que, como na cidade não tinha água encanada, era preciso guardar em baldes para ir usando ao longo da semana. "Carreguei muita lata d'água na cabeça. Deixava tudo arrumado para minha mãe e voltava para estudar em Maceió. Morava em um pensionato, era um quarto na casa da tia Mocinha. Ela cuidava da gente", relembra.
Formada na faculdade de Odontologia de Maceió, Jandyra conta que começou a trabalhar no antigo Instituto dos Funcionários Públicos e depois de algum tempo na Associação dos Plantadores de Cana (Asplana).
"Nessa época, comecei a viajar para as fazendas no interior. Tinham umas que o carro quase atolava de tanto barro. A gente viajava em uma kombi, se balançando para lá e para cá", destaca.
Com o passar dos anos as novidades foram surgindo. Ela conta que uma de suas melhores amigas, a Lourdes, era sócia da antiga loja Carrossel Musical. "Quando chegou a geladeira em Maceió, chegaram duas. A Lourdes ficou com uma e eu comprei a outra", relembra Jandyra. Na memória, ainda está gravada a primeira televisão, a chegada do telefone, a compra do primeiro - e único - carro, um fusca 1973.
"Foi perto do antigo Quartel da Polícia, na Mavel. Quando fui comprar, tinha acabado e tive que esperar a nova remessa chegar. E quando chegou, era um verde, daqueles bem cheguei. Eu vinha no começo da rua e as pessoas já enxergavam. Mas comprei porque só tinha dois. Fui a primeira e única dona".
O fusca percorreu muitas cidades. "Ia com ele trabalhar em Santa Luzia do Norte, em Coqueiro Seco". O carro virou símbolo para toda a família. A filha, nascida em 1970, aprendeu a dirigir com o fusca. A primeira neta, que nasceu em 1991, costumava usar o banco de trás como cama. "Quando ia trabalhar e ela ia comigo, forrava um lençol e colocava as almofadas do sofá. E ela ia dormindo o caminho todo".

Cruz das Almas
Por volta de 1960, Cruz das Almas ganhou o primeiro conjunto habitacional de Alagoas, construído pela Companhia de Habitação Popular de Alagoas (Cohab). Jandyra conta que, na época, passou pela rua e viu a casa a venda. Em 1977, ela comprou a casa e se mudou para a Avenida Pilar, 414. "Foram 23 anos naquela casa, perto da praia, com meu jardim e a mangueira", relembra. Atualmente, Jandyra mora no bairro de Mangabeiras, com a filha e dois netos.
Histórica Penedo
Localizada às margens do Rio São Francisco, uma das principais cidades históricas de Alagoas, Penedo é cenário de muitas lembranças da dona Maria José Tavares, de 73 anos.
Há tanta coisa gravada na memória, histórias que ouvia quando era criança, como uma: da passagem de Dom Pedro II pelo município, em 1859. "A mesa da casa das tias foi emprestada para a hospedagem do imperador".
Outra história que acompanhou a vida dela é a fuga da mãe. "Anos mais tarde da passagem de Dom Pedro II, minha mãe, que morava no município de Propriá, fugiu para Penedo, quando o cangaceiro Lampião e seu bando invadiram a cidade".

Escritório telefônico
Na juventude, Maria José estudou na Escola Normal de Penedo, onde se formou como professora. Trabalhou em um escritório telefônico, onde era necessário passar as ligações de forma literal, ligando um fio ao outro.
As diversões da época eram os chamados 'assaltos' na casa de algum amigo, onde os participantes levavam as comidas e as bebidas e faziam uma festa. Além disso, ir ao cinema era um evento. Quando o Cine São Francisco era novidade, as pessoas usavam suas melhores roupas para assistir aos filmes. "Era o point mesmo", conta. No carnaval, Maria José conta que frequentava os famosos bailes da Filarmônica.
"Nós íamos para todas as festas, voltávamos de madrugada e não tinha problema. Não tinha essa violência de hoje. Pessoas que conheço que ainda moram lá dizem que, hoje em dia, até para ir à missa de manhã cedo têm medo. Isso acho que mudou em todos os lugares", diz Maria José.
Morando em Maceió há mais de 40 anos, a penedense comenta sobre as diferenças de antigamente para os dias de hoje. "Sentava na rua, conversava com os vizinhos, era tão bom. Os meninos - filhos e netos - brincavam na praça e a única preocupação era atravessar a rua, que mesmo assim não era tão movimentada de carros como hoje", disse.
Nos fins de semana em Maceió, Maria e sua família costumavam ir às praias do Litoral Norte e à lagoa da "Pajuçara 2" como era conhecido o Dique-Estrada, no Vergel do Lago. Na época, há cerca de 30 anos, o local era turístico e composto por barracas de praia.

O macabro cortejo
Cinco filhos, treze netos e seis bisnetos. Esses são os números da história de Maria José Maurício da Rocha, de 86 anos, conhecida carinhosamente como "Dona Zezé". Moradora da Jatiúca há mais de 40 anos, ela viu o bairro se desenvolver. Hoje, tudo é diferente de como ela chegou.
Dona Zezé, nasceu em janeiro de 1931, na cidade de Rio Largo, mas, ainda criança, foi morar na cidade de Feira Grande com seus pais e seus irmãos. Até os sete anos, ela viveu no Agreste alagoano. Uma das memórias mais marcantes do período é, quando em 1938, seus irmãos a levaram para a sede do Instituto Histórico, no Centro, para acompanhar a chegada das cabeças de Lampião, Maria Bonita e parte do bando, que haviam sido mortos e decapitados em Sergipe.
As cabeças percorreram uma verdadeira via sacra por cidades e vilarejos até a capital alagoana. Milhares de pessoas, de todas as classes sociais, acompanharam o "espetáculo".
Confira um trecho do depoimento:
A orla de Jaraguá
Na adolescência, Maria José conta que morou com uns tios em um casarão na orla de Jaraguá, o mesmo onde hoje funciona um famoso restaurante. Ela veio para estudar na capital e, de bonde, ia e voltava da escola.
"Não tinha ônibus, nem táxi. Ou andávamos a pé ou andávamos de bonde. Uma linha passava bem em frente a minha casa e eram sempre pontuais. Não tinha preocupação com a violência e todo mundo se conhecia, inclusive, o piloto já tinha um lugar reservado para mim", relembra.
O pedido de namoro
Foi durante as viagens de bonde que Dona Zezé conheceu o esposo, José Soares da Rocha. Ela lembra que o pedido de namoro só veio após o aniversário de 18 anos. "Naquele tempo não tinha a maldade que existe hoje em dia. Ele sempre foi muito respeitoso comigo e com minha família", completa.
Após alguns anos, e se casar na casa em que morava, o novo casal foi morar em uma casa também no Jaraguá. Em frente a casa em que residiam, funcionavam dois grandes galpões onde, futuramente, foi construído o Centro Cultural e Exposições Ruth Cardoso.
Ela relembra que nesse período fez grandes amizades. "Tenho muitas lembranças de lá. Foi naquela casa que meus filhos nasceram e cresceram. Tinha um portão ligando a minha casa a casa do vizinho, que acabaram se transformando em padrinhos dos meus filhos. Eles tratavam cada um deles como filhos e vice-versa", relembra.
A costura
Desde criança, quando morou na cidade de Traipu, Dona Zezé aprendeu a costurar. Na época, era comum aprender o ofício, que para ela, virou profissão. Foram muitas clientes de Maceió, algumas da "alta sociedade".
Após anos vivendo no Jaraguá, Dona Zezé começou a procurar uma nova residência. Na época, a Companhia de Habitação Popular de Alagoas (Cohab) estava construindo o Conjunto Santa Cecília, no bairro da Jatiúca. Ela lembra que o local não possuía muitas residências e que a casa que escolheu ficava a 300 metros da praia. À sua frente era apenas um grande coqueiral e o famoso Sítio Jatiúca, que deu nome ao bairro.
"Era um ótimo lugar, apesar de não ter muita estrutura. Mesmo morando há 300 metros do mar, era possível ouvir as ondas quebrando na praia. O pão era vendido aqui na porta e pra comprarmos frutas e verduras, andávamos 1 quilômetro até o antigo Balaio", disse.
O "Balaio" era um mercado que ficava localizado onde está instalada a feirinha da Jatiúca. O local era o "ponto final" dos táxis que circulavam no bairro, porque, como não havia muita infraestrutura, as ruas eram de barro com areia.
"Nenhum taxista queria vir até aqui em casa, porque as ruas eram de barro e tinham medo do carro sujar ou atolar. Vínhamos andando até aqui ou íamos andando, mas isso nunca foi problema para nós. Nada faltava aqui em casa", lembra.
Com o passar dos anos, ela foi vendo o bairro crescer, se desenvolver e grandes prédios serem erguidos. Aquela vista para o mar foi encoberta pelo avanço da sociedade. Após mais de 40 anos, sua casa virou uma referência para os filhos, netos, bisnetos, irmãos, sobrinhos e amigos.
Sempre sorridente e generosa, ela atende a todo mundo e faz questão de falar com todos. Sua casa mantém as mesmas características de quando foi comprada: com muro baixo, para ver o movimento da rua. Mas ela conta que, infelizmente, por conta da violência, teve que optar por colocar grade e trocar o portão.
"Antigamente dormia com as janelas abertas e as portas destrancadas. Hoje, não posso nem pensar nisso".