De uma via para outra como motorista de aplicativo, o pernambucano José Iraquitan, de 47 anos, desperta a atenção dos passageiros que transporta diariamente na cidade de Maceió, em Alagoas. Para todos os que entram e se acomodam no banco de seu veículo, ele não esconde sobre o passado repleto de altos e baixos entre a vida nas ruas e por trás de uma cela de prisão.
Para a surpresa de quem o escuta, José explica que tudo começou com um sentimento de curiosidade aos 12 anos. Segundo ele, a residência em que morava, no bairro Cajueiro Seco, em Jaboatão dos Guararapes, estado de Pernambuco, era frequentada por diversos usuários de drogas.
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"Eu via as pessoas se reunindo no fundo da minha casa para fumar e isso acabou despertando uma curiosidade. Porque, na época, eu já experimentava o cigarro devido à minha mãe. Ela sempre falava: 'Pegue o cigarro e traga-o aceso'. Comecei, a partir disso, a pegar o gosto pela nicotina. Eu também via os jovens no fundo da minha casa e eles diziam: 'Vá para lá Iratanzinho, vá para lá', e eu respondia: 'Não, não, eu também fumo'", disse, antes de completar que, quando se deu conta, já estava usando drogas dentro da própria residência.
Outro motivo forte para concretizar de vez a entrada no mundo do crime aconteceu no momento em que foi colocado para fora de casa. Conforme ele, a mãe o olhou e o convidou a sair do lar com a famosa frase: "a porta da rua é a serventia da casa".
"Quando minha mãe soube que eu tinha começado a fumar maconha, em vez de me acompanhar e tratar, ela me colocou para fora de casa. Eu fui morar com a minha avó, sendo que comecei a cometer alguns delitos dentro de casa para manter o vício. A minha avó não me aceitou e eu fui colocado para fora novamente. A partir daí, eu passei a dormir em praças, cheirava cola e cometia pequenos crimes. Eu era a vergonha da família", lembrou.
Doze tiros
O mundo da criminalidade também trouxe consequências dolorosas para o corpo de Iraquitan. O ex-morador de rua escapou de três tentativas de homicídio e, das doze balas que o atingiram, quatro ainda estão alojadas. Além disso, perdeu rim, baço, metade das vísceras, dentes, tem uma cicatriz no rosto e peças de platina no ombro esquerdo e na perna direita.

"A primeira tentativa ocorreu em 1991. Por causa de alguns delitos, fui alvejado por seis tiros. Ao me recuperar, levei mais quatro. Passei por todo o processo de recuperação novamente e, em seguida, fui atingido por mais dois. A vida do crime me deu essas marcas. Nesse tempo, eu tava 'virado' e cometendo grandes assaltos. Tudo em 12 anos, período onde estava nas ruas, longe dos meus parentes, na criminalidade", pontuou ele, acrescentando que uma das balas alcançou sua coluna, o deixando paraplégico por um ano e seis meses.
Disparo esse que, ainda de acordo com Iraquitan, acarretou em um dos períodos mais dolorosos de toda a sua jornada. Ele relatou que no momento em que foi atingido estava conduzindo uma motocicleta e perdeu o controle da direção. Logo após, colidiu em um carro de passeio e acabou batendo com o rosto no asfalto.
"Minha vértebra ficou deslocada. Mexeu com meu psicológico porque fiquei desfigurado e aleijado. Foi doloroso, mas dei a volta por cima. Mesmo convivendo com as pernas atrofiadas e passando um tempo andando de muletas, voltei a andar. Agora, estou aqui para poder contar a minha história de superação", disse emocionado.
O microempreendedor revelou, ainda, que já passou por cinco procedimentos cirúrgicos e que outros dois devem ser realizados no próximo ano. "As cirurgias não podem ser sequenciais; precisa de um tempo de recuperação. Pretendo fazer o ligamento dos lábios, arrumar o nariz que está torto e tirar a cicatriz do rosto."
Recomeço

O medo de morrer impediu José Iraquitan de ser levado à dependência do crack e de outras drogas como a maconha, pico, haxixe, cocaína e até os chás de cogumelo e de trombeta - espécie de flor semelhante ao instrumento musical do mesmo nome.
No final de fevereiro de 1995, ano em que também foi detido por formação de quadrilha, ele conheceu, ainda na prisão, um homem que o aconselhou a procurar a instituição filantrópica 'Desafio Jovem do Recife', onde fez morada e conquistou algumas amizades.
Passado algum tempo, se formou em teologia, sendo convidado para visitar Maceió e, em seguida, para ministrar trabalhos evangelistas na capital alagoana. Sua missão foi implantar um trabalho de educação na formação de obreiros. Assim, segundo ele, essas conquistas possibilitaram que a jornada fosse contada por todo o Brasil e na Europa, em palestras inspiradoras. Iraquitan carrega consigo, inclusive, recortes de jornais para mostrar suas prisões e tornar a história verídica.
Em todo lugar que visita, o ex-morador de rua conta, principalmente, como foi o processo para se livrar dos entorpecentes. Para ele, o viciado apenas consegue sair desse mundo quando quer, pois, se não for um desejo dele, ninguém tem o poder de o ajudar a recomeçar.
"O centro de recuperação me acolheu. Ele foi minha casa e minha mãe. E, neste lugar, ninguém se livra das drogas com mais drogas. Nós passamos por uma desintoxicação através do suor ao fazer diversos exercícios, como jogar bola e plantar na horta. Além disso, sempre fazíamos uma leitura bíblica", explicou.
José relembrou ainda que os três primeiros meses do tratamento foram os mais difíceis e que é preciso ter muita força de vontade para seguir em frente depois de uma crise de abstinência. "Você fica com os nervos abalados. Você não come direito, não dorme, fica nervoso o tempo todo e tem alucinações à noite. Os três primeiros meses não são fáceis. Acredito que se a pessoa passar deles, consegue completar os nove meses iniciais do tratamento."
Homem de negócios
Iraquitan comenta que, nos 12 anos em que esteve no mundo do crime, conseguiu enxergar algumas janelas rumo à superação. O vício, porém, não o deixou mudar de vida. De acordo com ele, após ser atingido pelos primeiros seis disparos, um dos pensamentos iniciais foi largar tudo e se recuperar.
"Eu pensava em mudar, mas não tinha apoio. Eu já não estudava e nunca tive uma formação profissional. Como eu ia me sustentar dentro de casa sem ninguém? O mercado está concorrido, você tem que ter uma formação para se entrosar na sociedade. Quando não tem fica desacreditado", explicou.
O ex-morador de rua também revelou que tinha vergonha dos trabalhos 'dignos', optando, assim, pelo dinheiro advindo da criminalidade. "Na época de garotão eu era bonito, apresentável. Não queria me expor empurrando um carrinho de sorvete ou de picolé. Me achava o 'bambambã'. Preferia viver do tráfico ou de prostituição, como garoto de programa. Muitas vezes, fazia o uso da droga só para massagear o meu ego. Para se isolar, já que achava que ninguém me amava", assegurou.

Com o decorrer dos anos, as ideias que permeavam a cabeça dele foram se modificando. Assim, depois de passar um ano e seis meses na instituição filantrópica 'Desafio Jovem do Recife' e mais quatro anos como educador social, o ex-morador de rua precisou buscar formas para ter dinheiro no bolso e sobreviver.
Em 2010, José Iraquitan se cadastrou no programa Microempreendedor Individual (MEI), do Sebrae Maceió. "Eu fui o pioneiro. Fiz o cadastro no dia 17 de fevereiro. Fiquei no pé, ia direto ao Sebrae", disse ele, relembrando que anos depois, em 2012, conheceu um empresário goiano dono da fábrica de sorvete de iogurte Cremosinn.
A partir disso, ele viu sua vida mudar de direção. O mais novo empresário, com a ajuda do amigo e do MEI, adquiriu um freezer para dar início à comercialização do produto que, como relata, foi um sucesso de vendas na época. Contudo, o negócio empreendedor não durou por muito tempo.
Ao sentir pesar no bolso o preço do aluguel da residência que utilizava como ponto comercial, juntamente com os custos diários para a realização da entrega do produto, decidiu por parar. Em contrapartida, sua luta por uma vida melhor não tinha chegado ao fim.
"Alguns anos depois conheci minha esposa e tudo mudou para melhor. Ela já trabalhava com produtos de cabelo, como cremes para tratamento, chapinhas, cosméticos e, então, comecei a ajudá-la. Hoje expandimos às vendas, e sou o responsável pelas entregas e cobranças, além de trabalhar como motorista de aplicativo em boa parte do tempo", contou.
Relação familiar
Foi na capital alagoana que José Iraquitan começou a formar a própria família. Ele explicou que conheceu a esposa, uma mulher de fé - como ele mesmo define -, no período em que veio à cidade para implantar um trabalho na formação de educadores pelo Ministério da Assembléia de Deus.
O ex-morador de rua ainda lembrou a reação da família dela ao saber da história que o segue por toda a vida. "No momento em que a minha esposa quis se relacionar comigo, a própria família dela perguntou como ela ia ficar com um ex-bandido. Eles perguntavam: 'E se esse cara voltar a fazer coisas erradas?'. Ela acreditava na minha conversão e respondia que se eu tivesse que fazer algo, já teria feito. Ela foi contra a própria família e acreditou em mim", explicou, ao acrescentar que vive bem com a esposa já há 14 anos.
Como fruto da união, o casal teve duas meninas, que, atualmente, têm 7 e 10 anos de idade e sabem da história do pai. Para Iraquitan, esconder a realidade das filhas nunca foi uma opção, pois ele busca dialogar e ser mente aberta sobre certos assuntos, como, por exemplo, o mundo das drogas.
"Eu converso com elas abertamente e, além disso, minhas filhas me veem e ouvem minha história na TV. Não posso esconder a realidade. Quero dizer que eu tenho que falar sobre as drogas ou prostituição para não deixar que ninguém da rua fale. Um pai é ser amigo. Ele não encobre, e sim abre. Nunca precisei bater porque eu converso, e isso é algo que eu nunca tive. Mas isso não quer dizer que não vou fazer com elas. Elas têm pai e mãe presentes", disse.
Já em relação à mãe, que ainda reside em Pernambuco, Iraquitan comenta que ela apenas começou a crer na recuperação do filho quando o viu sair do presídio e se internar em um centro de reabilitação.
"Lá [reabilitação], eu cheguei totalmente desacreditado e sem perspectiva nenhuma. Eu dizia que ninguém me aceitava, mas como alguém vai me aceitar se a pessoa tinha intenção de roubar você? Não tinha como a minha família me aceitar e, hoje, eu entendo a posição deles", relatou.
Confinamentos

Desde muito jovem, o ex-usuário de drogas circulava de um confinamento para outro devido aos delitos que cometeu durante a vida no crime. Com apenas 16 anos ele foi detido na Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem) do estado de Pernambuco e, assim, deu início à primeira reclusão.
Para Iraquitan, o complexo se tornou uma "escolhinha do crime", pois foi durante este período que aprendeu todos os conhecimentos sobre a prática criminosa. "Os jovens ficam ociosos. Eles ficam sem nada para fazer e só conversam coisas terríveis. Quando eu saí, comecei a colocar em prática tudo o que eu aprendi lá dentro, como, por exemplo, roubar carro e moto", disse.
Após ser libertado, ele passou a morar na rua até os 18 anos, quando foi preso por formação de quadrilha e conduzido pela primeira vez a um presídio, em 1991, em Pernambuco. O microempreendedor ainda revelou que foi o responsável por levar o crack à cidade de Jaboatão dos Guararapes. Ele aprendeu a fazer a droga no período em que ficou confinado na Febem.
Com 21 anos, Iraquitan foi preso pela segunda vez pelo mesmo delito e foi condenado a 19 anos, sendo que apenas seis foram cumpridos. Atualmente, ele volta às penitenciárias pelo menos duas vezes por semana para ministrar palestras e contar a própria história.
Porém, o empresário lembra que quando estava preso a realidade era diferente. "Entrei no presídio com a roupa do corpo. Lá dentro você é quem faz o seu mundo. Os outros indivíduos rodeiam você e querem saber quem é você, de onde é, como 'caiu' e quem são seus comparsas. O histórico de quem você anda aqui fora reflete na cadeia. Se são bem vistos fora, são dentro. Eu vivia em uma cela 4x4 com cerca de 20 homens, na qual o mais fraco dormia no banheiro. Muitas das vezes eu passava necessidade, fome e sede".