"A Jurema deu um estrondo que toda a terra estremeceu. Por onde andará os companheiros da Jurema que até hoje não apareceu?"*. É preciso ter olhar e passos cuidadosos para conhecer o mínimo que seja sobre a Jurema Sagrada. Tipicamente nordestina, a religião de matriz indígena resiste em Alagoas, se esquivando de ataques cotidianos de preconceito, enquanto enfrenta adaptações para realizar seus rituais em meio ao processo de urbanização. Sem livros sagrados ou registros históricos 'oficiais', é através da oralidade que a tradição religiosa se perpetua.
Dotada de múltiplos significados, segundo seus adeptos, a Jurema é árvore, cidade e entidade. Cada símbolo presente nos rituais auxilia na aproximação às chamadas cidades sagradas,que se encontram nas árvores consideradas de Ciência, algumas delas bem conhecidas popularmente: Jurema, Angico, Vajucá, Junça, Aroeira, Manacá e Catucá. Nas cidades encantadas, habitam os mestres, as mestras e os índios, entidades encantadas cultuadas que vêm à terra para compartilhar cura, ciência, fé, amor e caridade. O resumo chega a ser bastante injusto, dada a complexidade que é a religião do Catimbó da Jurema.
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Iniciado ou 'tombado' há 18 anos, o mestre João relata que sua Ciência partiu do Recife, com berço na Jurema dos povos indígenas Fulni-ô. Ter vindo de família cuja tradição religiosa é de matriz indígena facilitou bastante sua proximidade com a também chamada Ciência dos Encantados. "Não tive resistência. Desde a barriga da minha mãe, já fui predestinado à Ciência da Jurema e fui aprendendo desde pequeno. Com sete anos tive os primeiros procedimentos e, aos 13, fui tombado",relata.
No entanto, segundo o juremeiro, nem todos partem de um vínculo tão direto com familiares para conhecer a religião, e são diversas as formas como aparecem novos adeptos. "A passagem se dá pela ancestralidade - que costumamos chamar de espiritualidade. A espiritualidade chama os discípulos para conhecer. Então os discípulos vêm, conhecem, passam pela parte do desenvolvimento, para que possa fazer o batismo", explica.
Entre rezas e Exus: os desafios dos sincretismos na Jurema
Segundo o mestre João, o sincretismo - termo que define essas fusões entre diferentes cultos ou doutrinas religiosas - é um dos desafios enfrentados pelos juremeiros de raiz. "Desde o começo em que nossa ciência vem tomando força, veio muitas outras passando por dentro dela. A Umbanda é uma ramificação da Jurema, mas unificando outras culturas. Já a jurema é raiz", distingue.

Nesse sentido, mestre João atenta sobre a preocupação com o processo de consagração de mestres. "Não tem como o mestre de Jurema trazer sua Ciência se estiver fora da Jurema. E o berço dela é o mestre, o índio, as mestras. Se o culto é misturado, não tem como exercer. Tem que estar dentro de Manucá, Vajucá e Catucá", relata.
Já o catolicismo popular vem aos rituais de Jurema através dos mestres. "A maioria deles eram rezadores, eram 'senhorinhos' do interior, que a única forma que tinham na vida para superar a fome e a dor era através da fé", explica. "E tinha as parteiras, com suas rezas, suas orações, rosários apressados, com os segredos de nossa senhora. As rezas movimentam parte do mestre, que vem do berço católico quando estava em terra", conta.
As misturas se refletem, inclusive, na existência de casas de Jurema. Tanto que há apenas três casas mais tradicionais em Alagoas, que cultuam a Jurema 'de raiz', sem misturá-la à Umbanda, por exemplo. "Existem casas que cultuam só a Ciência da Jurema, tanto em Maceió, como nos estados de Pernambuco e Paraíba. Elas não dependem de Orixá para nada. Nós não dependemos também. Mesmo tendo dois cultos diferentes na casa, eles são separados", retrata o mestre, que também é babalorixá.
Adaptações em meio à urbanização
Ao efetuar um estudo sobre os lírios de Jurema, a pesquisadora da UFAL, Analice da Conceição Leandro, aponta outras questões que forçaram a Jurema a adaptar certos rituais. "Além da sincretização com outras religiões, antes o culto acontecia nos ambientes rurais, naturais. Quando veio para a cidade, subalternizada como religião de matriz afro-indígena, foi situada em casas que não eram somente de Jurema", expõe a pesquisadora. "Não significa que a religião perdeu a força, mas elementos mais próximos entre culto e a natureza foram deixando de existir por conta das condições em que ela se desenvolveu na cidade", conta.
Entre as adequações apresentadas pelo mestre João, está a busca cada vez mais difícil em se encontrar árvores de Ciência. "O que houve foi uma pequena adaptação das matas para o que é feito nas cidades", diz, referindo-se aos rituais que acontecem dentro do espaço das casas. "Mas a gente tem que buscar as sete árvores sagradas na mata para fazer os rituais. Sem as árvores, não tem como fazer culto", esclareceu.
Quando se encontra árvore na cidade, segundo o mestre, o local é exposto demais para os rituais, de modo que os juremeiros preferem não realizá-lo por preservação e receio, inclusive, de preconceito. "A cidade não nos deu essa possibilidade de estar em contato direto com as árvores sagradas. Existem outras árvores além da Jurema, mas está cada vez mais difícil porque o desmatamento está demais", reflete.

As várias violações contra a "inviolável liberdade de consciência e de crença"
A Constituição Federal preconiza, em um país majoritariamente cristão, que as pessoas tenham direito de exercer suas crenças e cultos religiosos. Na dimensão dos fatos, porém, a situação enfrentada é de violação gradativa contra religiões não hegemônicas, com várias investidas de dominação da fé alheia, conforme os relatos do mestre João.
"A gente vem tentado manter nossa Jurema longe dos aproveitadores, por isso tem muita coisa que a gente não pode falar. Algumas pessoas querem usurpar e roubar aquilo que a gente tem de melhor, que é nossa fé. E o que acontece muito é o próprio berço cristão nos retaliar devido à fumaça, às cachaças, às frutas", conta.
Uma das violências comuns é a 'demonização' daquilo que não faz parte da religião hegemônica. "A gente sofre porque, quando colocamos nosso crucifixo, somos lindos e maravilhosos. Quando colocamos o nome da Jurema dentro, somos vistos como adoradores do diabo, e isso não é verdade. O índio nem reconhece esse ser", acrescenta o juremeiro.
Segundo ele, as agressões são bem objetivas e acontecem no dia a dia de quem cultua religiões de matriz indígena ou africana. "A repressão está na cara, nos terreiros quebrados, na opressão que sofremos diariamente, na intolerância ao lado da nossa casa, quando começamos o ritual e o vizinho coloca na maior altura um hino cristão. Nada contra, mas essa reciprocidade precisa existir, de respeitarem nossa fé para que a cultura não se perca", atenta.

Mais do que folclore
Em sua pesquisa, Analice da Conceição contextualiza, em certo momento, a forma como estudiosos descreveram a Jurema, muitas vezes situando como uma tradição inserida no folclore nordestino. Segundo a estudiosa, a perspectiva do 'folclore' acabava por desestimular a produção de registros sobre a religião.
E há problemas ainda mais graves quando se trata de uma religião de tradição popular, segundo a pesquisadora. "Passa a ideia de representação e de arte, coisa que não é feita com religiões hegemônicas. Se disserem que o Deus da religião cristã é folclore ou crendice, o resultado com certeza é muito mais complicado", compara. "Além disso, acabam colocando como assunto de museu. No sentido de dizer 'vamos estudar mais essa religião, como se não existisse mais', e isso não é verdade", problematiza.
A despeito dessas investidas que teorizam a religião como tradição do passado, os encantados se posicionam bem presentes aos juremeiros, enquanto remontam histórias de cativeiro e libertação. Um exemplo é Malunguinho, personagem histórico que, em vida, foi guerreiro liberto e montou o Quilombo do Catucá, no Recife, sendo consagrado guardião das matas e protetor. Em Alagoas, é conhecida entre os juremeiros a figura do Mestre Junqueiro, que canta ter vindo da Lagoa do Junco, localidade situada próximo ao município de Junqueiro, de onde 'juncando vem e juncando vai".
Há ainda cangaceiros, parteiras, vaqueiro e até a dona do cabaré, segundo Analice Leandro, embora os mais cultuados sejam mesmo os caboclos, índios e descendentes indígenas. Cada um deles vem com histórias retratadas nas canções, ou lírios, compartilhadas pelos juremeiros com pequenas variações. Essas personalidades de tipos populares também aparecem trazendo exemplos reais de cotidiano e luta.
Aos olhos de quem acompanha 'de fora' uma mesa aberta, surpreende a familiaridade que demarca a chegada do caboclo. Os gestos carregam história e, com a fumaça, com o toque do tambor, fazem com que se comuniquem passado e presente, coisa que não é fácil de fazer com palavras, por exemplo.
É festejo de tombamento, e em meio à dança vibrante dos cânticos, o que se pode falar sobre os companheiros da Jurema? No mínimo que, seja por onde andem, pisam na terra de um jeito diferente. Como afirma o mestre João: seguem indo (ou voltando?) à natureza, para respeitá-la e cultuá-la.
"Nós estamos resgatando hoje aquilo que foi tomado de nós, na chegada dos colonizadores. Então não podemos deixar que caia nas mãos de pessoas erradas novamente. Que caia nas mãos de pessoas que usem para um lado negativo, que vai implantar dentro de outra cultura, misturar e dizer que é deles. Se a oralidade não se perpetuar, não tem como a Jurema se manter viva. A oralidade através de pai para filho, de irmão para irmão, de nosso mestre da Ciência para nós", avisa.
*Trecho do lírio "Jurema".