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Em carta à irmã, Ludmila recorda infância no orfanato e saudade

Atacante da Seleção conta dores e emoções com o futebol: "Olhando para trás, penso que, se não fosse esse caminho, nós estaríamos juntas"

Ainda me lembro da última vez em que ouvi tua voz, irmã.

Eu tinha 15 anos e jogava pelo Juventus, em São Paulo, quando você ligou para a casa da tia Nenzinha, no bairro do City Jaraguá, onde eu morava. Disse para mim que sua filha nasceu, lembra? Ela chorava ao telefone e eu, que não te via há dois anos, senti saudade. Não sabia como estava teu rosto, tua vida. Dizer que te amo, Sheila, era o mínimo, mas queria ter dito muito mais.

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Hoje, eu, mulher negra, aos 25 anos de idade, sei que muita coisa aconteceu desde que você se foi. Primeiro da nossa casa e, há três anos, também desse plano. Fui campeã de Copa do Brasil, Libertadores, Campeonato Espanhol. Joguei Copa do Mundo e brigo até por vaga nas Olimpíadas de Tóquio, imagina? Queria dizer que penso em você todos os dias, irmã. Porque a gente sonhava juntas. A realidade é que, mesmo que te ver seja impossível, você sempre esteve comigo. E te escrevo para, enfim, dividir tudo isso com você.

As coisas não foram fáceis para nós, você sabe. Começamos a vida naquela casa de alvenaria, no interior de São Paulo. Lembra que quando chovia fora, molhava tudo por dentro? Mas esse era o menor dos nossos problemas. Tivemos um pai alcoólatra e uma mãe que, com dificuldade de cuidar da gente, nos deixou num abrigo. Eu com dois anos, você com três, mas a lembrança de quando ficamos ali nunca saiu da minha mente. Fomos as únicas, entre cinco irmãos, a viver parte da infância lá. E sinto que esse tempo nos uniu. Nos fez mais fortes. Não tínhamos escolha.

No dia em que deixamos aquele orfanato, jurei ser tudo por vontade da tia Nenzinha. Afinal, ela era nossa única referência de amor. Mas a verdade é que, mais uma vez, era a vida nos dizendo "não". Porque até mesmo o abrigo, que virou nossa casa quando crianças, acabou fechando as portas. E a tia, assim como nós, não tinha muita escolha.

O começo não foi fácil. Eu falava pouco, ouvia menos ainda. A rebeldia me deixava distante de todos, e você, Sheila, era a única que eu deixava entrar no meu mundo. Mas, se nos faltava luxo, ao menos tínhamos em casa, pela primeira vez, esperança. A tia, que nunca nos deixou chamá-la de mãe, nos amou como uma. E, mesmo dividindo um colchão para dormir, ali tínhamos um teto, privacidade, rotina, alimentação, roupa, escola.

Vez ou outra costumo lembrar do caminho no ônibus até a aula, de quando ríamos juntas, em plenas 6h da manhã, por qualquer motivo. As pessoas olhavam com cara feia, a tia beliscava para a gente sossegar, mas nada mais importava quando estávamos juntas. Era assim no ônibus, na capoeira, na rua. Precisava ser assim. Porque sempre soube que também era difícil para você... Ver as crianças na escola com os pais levando as bolsas, recebendo beijo, abraço.

Doía, mas eu comecei a entender que o carinho que a tia nos dava era diferente. Que o caminho da vida pode não ser com a família em que você nasceu. Acho que você nunca viu do mesmo jeito.

Olhando para trás, talvez por isso que a gente cresceu dando tanto trabalho. Quando estávamos juntas, chega saía faísca, porque você era rebelde demais. E eu não ficava para trás. Corríamos na rua, voltávamos para casa tarde da noite. Queríamos liberdade.

Éramos as únicas a jogar bola com os meninos do bairro. E Sheila, como você jogava... Costumo pensar que poderia estar no meu lugar, ou melhor, jogando comigo ainda. Você odiava perder, eu errava muito e te deixava brava. Lembra? Então terminava sendo melhor ir cada uma para o seu lado.

Jogar futebol era teu sonho, mas eu ainda não levava a bola muito a sério. Então comecei a gastar energia correndo. E foi no atletismo que, ainda criança, encontrei uma parte de mim. Eu era rápida. Mais que todas as outras. Disputei campeonatos, recebia elogios e acho até que a tia, que sempre falava preferir que a gente estudasse, ficou feliz por mim. Era atletismo, capoeira, hip-hop, jogar bola na rua.

A gente sonhava muito alto, Sheila. Pensávamos em ter uma família, uma casa para a gente. Acho que tudo que a gente buscava era ser vista. E o esporte me fez uma pessoa madura e resistente para brigar por isso.

Sempre dividimos tudo, mas a tristeza e revolta pelo que nunca tivemos, gerou, em você, um efeito diferente. Te ver com pessoas que te faziam mal, se destruindo através das drogas, era muito mais do que eu poderia suportar. E não consegui ver de perto mais essa perda. Acho que você nunca aceitou o fato da nossa mãe ter nos colocado no orfanato. Mas, Sheila, uma coisa posso te dizer: não foi falta de amor. Era o desespero de uma mulher pobre, negra e que tentava permitir que as filhas, mesmo com um golpe de sorte, pudessem ter uma vida melhor.

Eu te queria por perto, mas, de uma hora para outra, tudo mudou. E ainda éramos crianças quando você saiu da casa de tia sem olhar para trás. Sem você, nada mais parecia suficiente. Capoeira, atletismo, hip-hop... Procurei no seu esporte, o futebol, a saída. Olhando para trás, penso que, se não fosse esse caminho, nós estaríamos juntas. Porque eu também não estaria mais aqui.

Lembra daquelas histórias de jogadora que a gente ouvia e sonhava ter? Foi o que aconteceu comigo, Sheila. Um olheiro me viu jogando na rua e foi quem conseguiu minha primeira chance no futebol: um teste no Juventus, de São Paulo. Mais acostumada com a pista do que os gramados, naquela época, tudo que eu sabia era correr. Acho que a Emily Lima, técnica naquele ano, gostou disso. E eu terminei ficando.

Você estava longe, mas o nosso irmão, Harley, me ajudou. Ouvia, me dava conselhos, dinheiro. E eu sempre pensava como queria estar dividindo isso com você. As coisas foram ficando mais sérias, a Emily começou a botar limites, e eu precisei definir o que realmente queria. Te confesso que aquele era meu jeito de me sentir perto de você. Então, fiquei.

Acho que a tia nunca entendeu. Talvez ela só tivesse medo de eu, mais uma vez, me frustrar. Pensava que era fogo de palha, que eu iria desistir. Mas quando precisei morar no alojamento, ficar longe de casa, porém mais perto dos treinos, ela, do jeito dela, me deu força. E sei que foi difícil. Porque, naquela época, ninguém ouvia falar: "minha filha vai sair de casa para jogar futebol".

Preciso te dizer que, algumas vezes, penso que escolhi errado. Não deveria ter ido. Porque estava longe, jogando, quando um dia me ligaram dizendo que você estava no médico. Precisava da família, e eu não pude fazer nada. Pesa a cabeça, sabe? Porque lembro que, no momento mais difícil da sua vida, eu não estava lá. O sentimento de culpa não me abandona. Onde está o seu sorriso? Não há sucesso que tire essa ausência de mim.

Cheguei muito perto de desistir, irmã. Meus erros doíam, a saudade apertava. E, quando me senti sozinha, distante de todos que tinha comigo, encontrei na minha treinadora, Emily Lima, uma segunda mãe. Foi quando comecei a ver que eu poderia ser uma jogadora melhor, uma pessoa melhor. E eu precisava daquilo. Porque não imaginava que, naquela época, viveria uma das minhas primeiras dores no futebol: um dia antes de embarcar para meu primeiro Mundial de base, machuquei o joelho. E aquilo mexeu muito comigo, sabe? Porque é difícil saber que você não vai voltar a mesma depois de uma cirurgia.

Parecia o fim do futebol, e por isso precisei trocar os campos por uma loja no centro de São Paulo. Pensei que aquele seria meu caminho dali para frente, mas a minha vida não seria vender objetos de aço inox. A gente sonhava com mais. Eu precisava de mais. O convite para jogar na seleção sub-20 me fez recuperar o brilho nos olhos. Não tive dúvidas, larguei tudo e voltei. Queria que você estivesse por perto.

A verdade é que, mesmo sem sua presença física, parecia que estávamos lado a lado, como sempre. Mas, no dia 7 de março de 2016, a minha esperança de te ter de volta acabou. Assim como parte da minha vida. O joelho lesionado, que poucos sabiam, a depressão que dilacerava, de repente se tornaram coisas mínimas. A voz do outro lado da linha, naquela madrugada, me tirou o chão.

Você, a minha personificação do amor, tinha morrido há cinco dias, abandonada em um hospital, sem família, sem mim, sem ninguém. Te perdi para as drogas e as doenças que vieram junto a elas. E até hoje é difícil falar sobre isso. Eu falhei. E essa dor, Sheila, não tem cura.

Naquele dia, eu soube: se você quer mudar algo, tem que dar a cara a tapa, tomar coragem. E quando mulher negra, como nós, é preciso ser dez vezes melhor em tudo. Porque sempre vai ter alguém para te dizer que não foi o bastante. Foi isso que a vida me ensinou. E foi com isso que eu lutei. Com essa luta que, em 2017, tive minha primeira convocação para a seleção principal, com a Emily no comando. E me tornei a primeira brasileira a jogar pelo Atlético de Madrid, na Espanha, onde estou.

Preciso te dizer que senti medo. Era outro país, idioma, cultura. E meu primeiro treino foi um pesadelo, Sheila. Do jeito que te fazia raiva quando jogávamos na rua. A questão é que as meninas aqui são muito técnicas, e eu me perdia quando precisava passar a bola. Vou te dizer, eu via as palavras nos olhos delas: "ela não sabe jogar bola". Eu voltava para o alojamento chorando, conversava sozinha, mas queria falar com você. Queria voltar para a casa que dividi contigo, mas não te encontraria. Resolvi ficar. Por nós.

Pensava em tudo isso, sabe? Mas eu sabia que precisava estar aqui. Você tinha que ver como ficaram as crianças da nossa rua quando vim. Virei uma referência, Sheila. Então eu tinha que ser forte, mostrar para elas que não se pode desistir. E acho que parte de mim também tentava mostrar isso a você.

Acho que estou no caminho certo. Demora, porque não é igual ao masculino, você sabe. Tem que ter paciência. Mas deixa eu te contar uma coisa... para estar na seleção, tem que ter muito talento, Sheila. A gente conhece pessoas que vêm lutando lá de trás, Marta, Cristiane, Formiga. E 2020 será um ano importante. Joguei o Mundial de 2019, fui chamada para o Torneio Internacional da França, mas vou ter que mostrar muito trabalho, porque a nova técnica, a Pia Sundhage, exige, cobra. Menos que você, é verdade...

Sei que não foi como a gente queria. Porque quem não quer ter pai e mãe? Não foi fácil chegar até aqui. Mas cheguei, e agora tenho que terminar. Acho que eu fui escolhida para viver coisas difíceis, sabe? Mas também mostrar a quem tem uma história como a nossa, que existem outros caminhos para seguir. Que podem colocar outra família na sua vida, que vai te criar, mostrar amor. Mas que você tem que ser forte.

Passa tanta coisa na cabeça, Sheila. Se era para você estar aqui, se era para ser o contrário. Você deixou duas crianças, e eu não conheço nenhuma delas. Não sei onde estão, como são, se parecem com você. Eu carrego muita culpa, porque não pude estar contigo. Às vezes, parece que você está viva, andando por aí. Então, eu converso. E espero que, de alguma forma, você sinta orgulho de mim. Hoje, acho que escrevo para te pedir desculpas. E para que você saiba que, desde os 16 anos, eu jogo por você. Pelo teu sonho, pelo nosso sonho.

Te amo, irmã.

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