O cruzamento de avenidas é um daqueles locais onde quem passa pouco observa -ou não quer observar -, os meninos e meninas, mulheres e homens que fazem das paradas obrigatórias sua oportunidade de subsistência. É em um destes espaços de 'ponto cego' social que aparece, não repentinamente, a história de dois irmãos gêmeos em situação de rua, cujo padrão de beleza lhes caiu estrategicamente: com seus olhos claros e postura fotogênica, os meninos foram considerados tão bonitos, mas tão bonitos, que chegaram até a se tornar visíveis. Hoje a dupla estampa a foto da campanha #ajudeosgemeos.
Essa notoriedade toda foi engatilhada a partir de duas estudantes cujo trabalho próximo às lentes fotográficas possibilitou uma sensibilidade maior às vista da rua. Andira Miranda, que cursa jornalismo, precisava realizar um ensaio fotográfico requisitado para uma disciplina da faculdade, e selecionou um tema no mínimo complexo: o trabalho infantil. Para cumprir a demanda, decidiu fotografar garotos atuando em sinais de trânsito. As imagens, postadas em uma rede social, foram logo visualizadas por Laura Cavalcante, modelo e estudante de psicologia, que decidiu também intervir na situação da maneira como sabia.
Leia também
Após se articularem, Andira e Laura decidiram conversar com os rapazes e, principalmente, com a mãe deles, Fernanda Felix, uma vez que os meninos não têm 18 anos. "Fomos lá conversar com eles e dizer o que estava acontecendo. Eu disse que tinha visto as fotos deles, que tinha viralizado e que tinha gente querendo doar coisas, lojas querendo doar roupa e oferecendo trabalho. Também falamos com a mãe deles e fomos construindo esse vínculo".
E assim começou a campanha que hoje tem até nome e hasthtag: #ajudeosgemeos. Em algumas conversas e páginas da internet, há até quem diga que os garotos estão atuando em agências internacionais, ou que foram 'descobertos' por profissionais nos Estados Unidos. Um boato que passa bem distante da realidade.

A verdade é que Alisson e Anderson têm 15 anos e moram em um improvisado de lona sob uma árvore, situada entre as avenidas Paulo Brandão e Álvaro Calheiros, na Jatiúca. Junto à mãe e ao padrasto, os adolescentes levam os dias fazendo malabares em troca de dinheiro. "Quando acordo, vou atrás de comida. Depois disso, fico lá trabalhando", relata Alisson, bem timidamente.
"Conseguimos doações de alimentos, mas eles não têm como cozinhar, Também conseguimos dentista, um salão, roupas de uma loja, e uma psicóloga que está prestando uma assistência super importante. Ela não só nos dá toda a orientação de como podemos nos aproximar dessa família de uma maneira em que se sintam mais à vontade possível, preservando a autonomia, como ela também está nos orientando bastante sobre toda a parte burocrática, para que tenham documentos e sejam inscritos em programas básicos como bolsa família e aluguel social", relata Laura.
A psicóloga em questão é Ana Rocha, especialista em dependência química e coordenadora de uma unidade de acolhimento para crianças e adolescentes envolvidas com álcool e drogas. Ana também reside nas imediações e já conhecia a família há algum tempo. "Eu fazia algumas doações à Fernanda e ao marido, depois vieram os meninos. Na internet, vi a campanha e entrei em contato", conta.

A RUA COMO UMA ESCOLHA?
Na última quarta-feira, 13 de junho, Alisson e sua mãe foram conduzidos por Laura até o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua, o Centro Pop 1, no bairro do Jaraguá. Alisson e Fernanda foram prontamente reconhecidos por funcionários na recepção, que já revelaram que os garotos tinham sido assistidos pela rede pública de assistência social, em projetos anteriores.

À época, os garotos tinham apenas dez anos. Depois disso, segundo a coordenadora do Centro Pop, Alessandra Silva, os meninos deixaram o acompanhamento. A coordenadora atribui a saída a uma série de fatores. "Acontece muito a perda de vínculo [com o Estado]. A política prevê a liberdade, o direito de ir e vir, e se pauta na autonomia. Então eles escolhem se querem inclusive estar no Centro Pop ou no banco da praça". Alessandra explica, neste sentido, as distinções entre a dinâmica do centro de assistência, que possui regras e certos padrões de rotinas, e a perspectiva da rua enquanto uma instituição 'sem limites'. "Nesse caso deles, a família inteira vê na rua um espaço de subsistência que não pede uma contrapartida, eles não têm um dever", opina.
O coordenador do Movimento Nacional da População em Situação de Rua no estado de Alagoas, Rafael Machado, não entende a situação dessa maneira. "Não vejo isso tudo como uma escolha de se estar ou não nas ruas. Quando você está nas ruas, você não tem esse raciocínio. O raciocínio é de um dia para o dia seguinte", afirma. "Quando há envolvimento com droga, por exemplo, não se escolhe nada. A droga é que escolhe por nós", conta Rafael.
No que diz respeito à perspectiva do 'além das escolhas', Rafael Machado lembra que compete ao Estado a obrigação de proporcionar uma aplicação mais efetiva das políticas já existentes para a população em situação de rua.

Alessandra também atenta: "as instituições precisam também ter atrativos, porque é muito difícil desinstitucionalizar a rua", diz . Entre os serviços oferecidos pelo Centro Pop, segundo a coordenadora, há encaminhamento para Educação de Jovens e Adultos, para o aluguel social, oficinas de saúde, rodas de conversa e, quando necessário, se aciona órgãos como a Defensoria Pública para casos mais específicos. "Aqui é destinado para pessoas que são maiores de 18 anos. No caso, quando são adolescentes nós encaminhamos para o conselho tutelar e a mãe é responsabilizada pela situação de trabalho infantil em que eles se encontravam, mas nós não deixamos de fazer o acompanhamento", explica.
Para Rafael Machado, é o Estado quem precisa atentar para as responsabilidades, aplicando efetivamente as políticas. "É necessário uma intervenção maior no sentido de reinserção social e reintegração à sociedade, oferecer saúde e assistência social. Nós sabemos que não há abrigos suficientes nem para adolescentes nem para os adultos. Não há espaços de referência e os centros pops que existem precisam ser muito melhorados, e funcionam em condições muito mínimas", conta. "É preciso trabalhar muito na estrutura para avançar essas questões. E é um compromisso do Estado de cumprir com o Pacto Federativo Republicano", atenta.
Segundo Alessandra Silva, em 2008 houve uma pesquisa nacional que divulgou o contexto de pessoas situação de rua. "Hoje já sabemos que esse número triplicou. Um dos dados apontados é sobre a motivação. O que pudemos comprovar também com o levantamento que fizemos no Centro Pop em 2017, a partir dos nossos formulários, foi que o que motiva as pessoas a irem para as ruas são conflitos familiares, desemprego e dependência de drogas", conta.
De poucas palavras, Fernanda permaneceu no Centro Pop com uma expressão pouco à vontade. Questionada, relatou não se sentir à vontade com a intervenção das assistentes sociais, após ter os dois filhos mais novos, de 3 e 7 anos, recolhidos pelo Conselho Tutelar. "Eles disseram que eu precisaria ter uma casa para que eles voltassem. Já morei em uma casa de aluguel e acabei sendo despejada porque não tina como pagar. Não quero uma casa alugada onde depois não vou ter dinheiro e vou ser despejada. Quero casa se for minha", conta.
Para a psicóloga Ana Rocha, a aquisição de uma casa, seja por programa de governo ou doação, não é o bastante para o resgate da família desse contexto das ruas - e das drogas. "Aluguel social ocorre por alguns meses e serve de maneira paliativa, para a pessoa se reorganizar para a vida. E como vai ser o restante do tempo? Isso é meio controverso. As assistentes sociais fazem o trabalho de maneira correta, que não é a forma como ela desejaria", comentou a especialista.
Rafael Machado acrescenta. "A questão não é só tirar das ruas, mas propor algo melhor para as famílias, a partir da intersetorialidade. Não há como ter efetividade se, além de tirar, não propor um tratamento, sem colocar a própria mãe em um tratamento", reforça.
Essa perspectiva de segregação familiar, temida por Fernanda, também dificulta a aproximação com o Estado, um receio nem um pouco infundado. Segundo Alessandra, quando os garotos foram assistidos pela primeira vez pelos órgãos de assistência social, foi sugerido à Fernanda a retirada dos garotos para a adoção estrangeira. "Quando eles eram mais novos, nós fizemos essa sugestão porque sabemos que teriam uma vida bem diferente desta que eles têm agora. Mas eles não quiseram. Depois de um tempo, deixaram de vir e não tivemos mais notícias".

A CAMPANHA E O PROTAGONISMO
Mal os rostos de Alisson e Anderson 'estouraram' nas redes sociais e, entre parabenizações, doações e felicitações, também surgiram alguns questionamentos que terminaram por polemizar a campanha. Uma das questões problematizadas é seletividade de apoio específico aos meninos em decorrência de suas aparências. Neste sentido, as estudantes rebatem: "Laura e Andira não é uma instituição, somos duas pessoas que estão tentando fazer algo de efetivo por essa família. O objetivo não é arrecadar doações e fingir que nada aconteceu enquanto eles continuam nas ruas.Como somos envolvidas no mundo da moda, vimos na beleza deles uma possibilidade de ajudar toda uma família que está ali por trás".
Um outro fator levantado foi a exposição de dois garotos em situação de rua que, sem acesso à internet ou ao que lhe tem sido apontado, podem não ter discernimento suficiente para responder de maneira ativa ao que tem sido oferecido. Em suma, em que medida os adolescentes e sua mãe têm protagonizado todo esse movimento?
Para a mestranda em antropologia da Universidade Federal de Alagoas, Guadalupe Ferreira, é preciso refletir sobre a forma como essa mobilização acontece. "Como utilizaram a imagens dessas pessoas, que apesar de morar na rua, trabalham no sinal, limpam vidros? E como a classe média que está utilizando o carro que essas pessoas limpam olham para eles, gerando uma repercussão que eles não estão entendendo", questiona.
A preocupação com estas questões é bastante compartilhada entre as jovens, apesar de não compreenderem todas as dimensões interpostas em uma campanha de resgate a uma família em situação de rua . "Não chegamos e simplesmente abrimos a página. Primeiro conversamos com eles, com a mãe deles. Falamos sobre as doações. No dia em que combinamos para tirar as fotos, o Alisson foi, mas o Anderson não quis ir porque estava cansado e queria dormir. No outro dia, ele quis e nós fomos com ele. Tudo nós conversamos com eles", esclarece a estudante.
"Nós deixamos sempre claro que eles farão o que quiserem. É tudo para eles, não é nada para gente. O que a gente quer é aproveitar a oportunidade dessa repercussão e conseguir o apoio que eles precisam do Estado", comenta. "Tiramos fotos deles como modelo, com autorização da mãe, e não postamos ainda porque vamos esperar reunião que teremos, na semana que vem. E se eles entenderem que a melhor coisa é não postar, não vamos postar", garante.

"É um movimento bacana e espero que essa experiência seja vivida de forma positiva, mas não que esqueçamos que o poder público existe e a maior responsabilidade é deles. A gente sabe que é um trabalho burocrático que demanda demora, e é preciso saber bem como direcionar campanhas assim, mesmo porque é preciso trabalhar a assistência psicológica", comenta. "Hoje, por exemplo, eles estavam marcados para tirar o registro de identidade, e aí quando o pessoal da abordagem social passou, a Fernanda disse que estava cansada e não iria. Depois ela foi vista limpando os sinais. A perspectiva é de que por que ela vai deixar de receber o recurso imediato para fazer isso?"
Essa oscilação da família é conversada com as estudantes. "A gente precisa ouvir. A primeira sugestão que dei a elas foi para que parassem e vissem o que eles querem. No primeiro contato, eles ficaram meio reticentes e depois disseram que queriam tirar as fotos. Conversaram, mas tudo sem muita firmeza, de repente eles nem acreditavam no que estava acontecendo. Eles cortaram agora o cabelo e hoje estavam ali, dormindo em frente a Caixa Econômica. Quer dizer, não há como elas tocarem este projeto sozinhas, porque há toda uma necessidade de estrutura", acrescenta.
Na próxima terça-feira, 19, elas registram que haverá uma reunião da família com Andira, Laura, equipes do Ministério Público, do Consultório de Rua e de outros órgãos, para um esclarecimento mais articulado de como conduzir toda a situação e - além disso - o que fazer com as doações recebidas.
"Mesmo sem querer associar droga à criminalidade, temos que considerar a questão de que roupa pode servir como moeda de troca e esse é um dos nossos maiores receios. Até agora, estamos evitando que eles lidem diretamente com dinheiro", contam. "Pela extrema situação de vulnerabilidade na qual eles estão submetidos, não é vantagem entregar todo o dinheiro para a família, sem prepará-los anteriormente para outras possibilidades e investimentos que propiciem uma vida melhor".
Segundo a estudante de psicologia, a expectativa é de que a reunião traga mais orientações para as jovens. "Apelamos no Instagram e apareceu o consultório de rua, que trabalha na mesma perspectiva que a gente, de acolher, de não segregar, de respeitar a autonomia deles e da mãe deles, de entender que o querer estar nas ruas perpassa por outras questões. Até então só tínhamos encontrado pessoas que trabalham a partir da internação compulsória e da segregação, como se eles quisessem ficar na rua. A gente vai sentar e pensar junto algo para eles e com eles", reforça.