O legado e a história de Fátima Menezes, a maestrina de Alagoas

À frente do Coretfal, artista e ativista cultural revolucionou o canto coral no âmbito local e também no Brasil

“O que dizer de alguém que mudou a sua vida?” — A pergunta com a qual o barítono Bruno Sandes iniciou sua despedida da maestrina alagoana Fátima Menezes, que faleceu na noite da última sexta-feira (15), poderia ser proferida por centenas de outros jovens que passaram pela batuta da mestra, essa artista que revolucionou o canto coral em Alagoas e foi força motriz de revoluções musicais nas vidas de alunos, colegas e do público que fielmente acompanha o Coretfal.

“Não tenho palavras para expressar o quão grato eu sou a ela e a Deus, porque nossos caminhos se cruzaram. Hoje, canto e vivo o meu sonho porque ela acreditou em um jovenzinho de 16 anos que bateu na porta da sala do coral em uma tarde dizendo que queria cantar”, escreveu Bruno Sandes em uma postagem emocionada no Instagram. O barítono, que brilha nos palcos dos EUA e do mundo, começou a carreira no Coretfal e, ao lado de Fátima, é um exemplo do florescer das sementes semeadas pela maestrina.

Fátima Menezes morreu aos 68 anos, vítima de um câncer. Ela estava à frente do Coretfal (coral do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Alagoas) desde a década de 1980, quando recebeu a batuta da mãe, Maria Augusta, fundadora do grupo. O coral rompeu os muros do Ifal, tornando-se referência no Brasil e até no mundo. Em 2005, foi reconhecido como ponto de Cultura pelo governo federal, colecionando, ao longo do tempo, prêmios nacionais e internacionais.

Festança, último espetáculo do Coretfal sob a batuta de Fátima Menezes - Foto: Divulgação

Ela também era presença marcante na vida cultural de Maceió. Foi presidente do Conselho Municipal de Cultura da capital alagoana e voz da música de Alagoas em diversas oportunidades. No Carnaval, brilhava entoando marchinhas no bloco Pinto da Madrugada.

A maestrina fazia questão de exibir o filé alagoano nos figurinos do Coretfal, assim como a música popular do Nordeste no repertório. Com ela, os espetáculos ganharam capricho tecnológico, performático e cênico, quando ninguém, até então, ousava fazê-lo no canto coral. “Canto por Todos os Cantos”, “Ecos Brasil 500 anos”, “Retrato Cantado do São Francisco” e “Baião de Dois” são obras que exibem a genialidade e pioneirismo de Fátima Menezes.

Em agosto passado, como se adivinhasse os desígnios do destino, Fátima foi ovacionada pela plateia e pelos mais de 40 integrantes do Coretfal no espetáculo “Festança”, que celebrou os 50 anos de atuação do grupo. A apresentação no Teatro Deodoro mostrava o melhor do coral, com suas coreografias baseadas em folguedos populares, personagens divertidos e emocionantes e o brandir orgulhoso da cultura nordestina e brasileira.

Fátima Menezes estava à frente do Coretfal há mais de 40 anos - Foto: Divulgação

Para o artista Fred Correia, um dos legados de Fátima Menezes foi mostrar que é possível ter sucesso, com dedicação e ousadia, até mesmo em uma seara com poucas oportunidades.

“Ela teve uma ação muito forte, foi uma mulher que não ficava só no que fazia, que era o canto coral, onde ela formou várias gerações de coralistas. Viajou esse país todo, participou até de apresentações internacionais, foi uma pessoa superimportante em um campo onde não há muitas oportunidades, que é o canto coral”, reflete o atual presidente do Conselho Municipal de Políticas Culturais (CMPC) de Maceió.

O produtor cultural Alexandre Holanda escreveu: “Sua luz ecoa, você fez o mundo muito melhor, você distribuiu música e alma mundo afora, iluminou vidas! Vá em paz”.

Para Gal Monteiro, artista e jornalista alagoana que integra o Coretfal há 30 anos, Maria de Fátima Monteiro Menezes deixa uma marca indelével na cultura alagoana.

“Era dona de uma energia que fazia o mais inatingível dos sonhos virar projeto e, logo depois, realidade. Eu a conheci no palco: eu, na plateia. Fiquei encantada com a força cênica do Coretfal e tratei de me misturar ao grupo”, conta, emocionada.

“Tive a alegria e o privilégio de aprender, com a maestrina, que a voz é um instrumento poderoso e versátil, capaz de entreter, emocionar, identificar. Que o canto coral é uma forma de apresentar peças musicais e, também, um portal de conexão entre anônimos que se tornam artistas pela possibilidade de se expressarem com o corpo todo. O Coretfal foi criado com essa missão, pela maestrina-mãe, Maria Augusta Monteiro e, dessa forma, atua há 50 anos”, continua Gal.

“Quando Fátima, a maestrina-filha, recebeu a batuta, manteve acesa a chama criativa e imprimiu ousadia ao trabalho do Coretfal, na forma e conteúdo. Fátima era uma líder natural, inquieta, ansiosa, resiliente e obstinada. Uma pessoa a quem os amigos e até conhecidos recorriam diante de equações difíceis. Com quem contavam na saúde e na doença. Sobretudo na doença. E, se comprasse uma causa, tornava-se uma espécie de oráculo e mágica, intuindo informações e tirando alternativas da cartola. Só largava o problema quando encontrava a solução”, complementa.

Artista e jornalista cultural Gal Monteiro destaca pioneirismo e dedicação ferrenha de Fátima Menezes à arte - Foto: Divulgação

Gal Monteiro ressalta que Fátima Menezes, a maestrina de Alagoas, era uma operária da arte e conhecia todos os processos de produção cultural e artística, da concepção à prestação de contas.

“Foi, sobretudo, um ser apaixonado, visceral em tudo o que fez. Sobretudo pela música, pelos filhos, amigos e carnaval. Não, necessariamente, nessa ordem. Cantou, regeu, projetou. Organizou encontros internacionais de coros, trazendo para o palco o melhor do canto coral de Alagoas, do Brasil e de outras plagas. Foi daquelas amiga ‘até debaixo d’água’. Ela foi dessas pessoas imprescindíveis, que deixa um legado de amor à música e aos desafios; uma herança tão valiosa que não se pode mensurar sem incorrer em erros de cálculo. A música de Alagoas está meio sem ritmo, com muitas notas baixas e soturnas, um pouco desafinadas. Mas, como ela mesma disse, referindo-se ao espetáculo que celebrou os 50 anos do Coretfal, inspirado na obra homônima do maestro Almir Medeiros: ‘a Festança vai continuar’. Só gratidão, Fátima, por todos os destinos que você mudou pra melhor”, finaliza Gal.

Fátima Menezes, no espetáculo Festança - Foto: Divulgação

Diógenes Tenório, escritor e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL) e da Academia Alagoana de Letras (AAL), recorda que conheceu o canto coral por meio de Fátima Menezes. “Neste dia chuvoso de setembro, o céu deve estar numa grande festa musical. Dona Maria Augusta vai novamente partilhar a batuta com a filha, o coro dos anjos e arcanjos estará afinado como nunca”, diz o escritor.

“Se apurarmos bem os nossos ouvidos, talvez até consigamos ouvir alguns acordes, no cair da tarde”.

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