Chantal Jeanne Lafaye Frazão nasceu nos arredores de Paris, na França, e desembarcou em Maceió em 1979, para ficar. Até poucos anos atrás, dedicava-se exclusivamente à família e às artes plásticas. O talento literário foi revelado apenas na maturidade, tal qual Cora Coralina e Conceição Evaristo. A franco-alagoana anuncia agora sua segunda obra, ‘No lugar do morto’, uma autoficção que mergulha na França do período pós-Segunda Guerra Mundial. Há memórias no livro, narrativas sensíveis, personagens complexos e demasiadamente humanos — inclusive no que diz respeito à crueldade. O lançamento será no restaurante Anamá, na capital alagoana, em 26 de novembro, das 18h às 21h.
A autora revela que a escrita surgiu como uma necessidade, uma urgência de quem acumula histórias e resquícios de realidades quase completamente apagados pelo tempo. Em um período de guerras pelo mundo, quando o passado se repete e reaviva traumas coletivos, essas histórias com gosto amargo de vida real nunca foram tão substanciais.
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“Meus parentes eram pessoas profundamente traumatizadas. Mas ninguém se submetia a uma psicanálise freudiana por ser um tratamento caro e também por ser considerado impudico revelar seus segredos escabrosos para um desconhecido”, explica Chantal Frazão. Contudo, esses mesmos parentes, em suas incontidas necessidades de desabafar, encontraram na pequena Chantal uma interessada interlocutora. “Eu adorava escutar as indecorosas conversas dos mais velhos, todas repletas de detalhes sinistros e mórbidos. Oferecia-me como balde no qual os adultos ficavam à vontade para vomitar suas mais abomináveis confidências. Sempre pedia mais e mais... De tanto ouvi-los com atenção, tornei-me, igualmente, uma contadora de histórias. Anos mais tarde, ao relatar esses episódios familiares aos amigos, ouvia o seguinte conselho: – Chantal, você precisa escrever um livro”.
Depois de algum tempo maturando a ideia, a escritora decidiu exorcizar os fantasmas, transformando-os em personagens de enredos fascinantes.
Em entrevista à Gazeta, Chantal revela que uma conjugação de forças praticamente a empurraram para a literatura e reflete sua escolha por dissecar o que lembra e o que elabora do mundo e daquela França de outrora, mas com um tempero alagoano de quem já vive por estas bandas há 45 anos.
A conversa a seguir contou com a contribuição preciosa da jornalista Patrycia Monteiro, especialista em literatura e que encabeça a editora alagoana Matriz, pela qual a obra é publicada. A revisão do livro é de Sidney Wanderley. O projeto gráfico é assinado por Fernando Rizzotto.
GAZETA. As histórias de ‘No lugar do morto’ chegam a ser perturbadoras de tão sinceras e viscerais. Em algum momento, você hesitou em relação à exposição pessoal? Ponderou sobre possíveis julgamentos?
CHANTAL FRAZÃO. Claro que hesitei na hora de divulgar meus segredos. Eu já tinha um pouco mais de sessenta anos quando lancei minha primeira obra. Ou seja: hesitei durante várias décadas! Acontece que, quando peguei gosto pela coisa, não consegui mais parar. Estou me programando para redigir meu terceiro livro. Acredito que, logo depois, terá mais um quarto saindo do forno. Tenho ainda muitas confissões para partilhar!
Sim, eu imaginei ser alvo de julgamentos, mas é o grande barato, un grand frisson, de lançar um livro. Ainda mais quando ele é, de certa forma, biográfico. Quando jogo minha intimidade para o público – assim como um pescador lança sua rede para o mar –, há sempre um retorno por parte do leitor. Às vezes o resultado da pesca é imediato, recebo recados calorosos. Tem um senhor idoso que costumava me escrever cartas, dando suas opiniões, que acatei de modo geral. Nem sempre as pessoas me enviam suas impressões. Acontece que, quando as encontro, em algum evento, percebo que me olham de um jeito diferente. Por causa do livro, elas agora sabem quem eu sou, elas enfim me conhecem de fato.
Veja, sou uma senhora madura com sobrepeso. No mundo atual, no qual a imagem é extremamente importante, eu passo despercebida. Com os anos avançando, tornei-me completamente transparente. Ninguém me nota. Acontece que, com o livro, o leitor descobre que essa senhora, aparentemente pacata, atravessou muitas aventuras. Inesperadamente, o livro tornou-me visível. De repente, existo! Alguns cidadãos, que nunca tinham se interessado por mim, aproximaram-se e vão me falar com bastante entusiasmo de algumas situações descritas nos meus textos. Aliás, essas pessoas se tornam íntimas minhas, pois conhecem meus familiares pelos relatos. Por exemplo, elas simpatizam com certo parente meu como se o conhecessem pessoalmente. Só as pessoas muito próximas sabem da nossa verdadeira história familiar. O leitor passa a ser um amigo meu, muito próximo. Ele aprecia as peraltices do meu tio Émile; ou fica combalido diante do destino infausto da prima Irene.
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Por que escolheu a autoficção? Já era uma leitora desse gênero literário? Quais autores do gênero a inspiraram?
Aprecio imensamente a autoficção, um estilo literário muito atual e em voga, com autores detalhando seus traumas, seus segredos pessoais. Na minha modesta opinião, encaro a autoficção como uma evolução natural da literatura, principalmente quando se trata de autoras francesas. Veja, no século 19, a escritora Aurore Dupin resolveu usar um pseudônimo masculino, para poder publicar sua obra. Ela passou a assinar seus romances ficcionais como George Sand. Ela era amante do compositor Frédéric Chopin, que dependia financeiramente de George. Ela ganhava bem a vida com seus livros, era ela que colocava comida na mesa. Acontece que, quando viajava até Paris para frequentar os salões literários, ela se vestia como um homem, fumava charuto, apagava sua feminilidade, pois o universo literário era restrito aos homens.
Posso também citar outra escritora francesa: Sidonie-Gabrielle Colette. Quando iniciou sua carreira literária, no início do século 20, foi seu marido, Henri Gauthier-Villars, que publicou seus primeiros livros, usando o apelido dele mesmo: Willy! Era ele que recebia o dinheiro dos direitos autorais, só deixando uma reles mesada para a esposa. Um verdadeiro absurdo! Após se divorciar e se emancipar, a escritora continuou a produzir muitos outros livros. Ela é considerada a pioneira dos romances bioficcionais. Li boa parte da sua obra durante minha adolescência. Sou fascinada não somente pela escritora, mas também fico pasma com a ousadia comportamental da escandalosa mulher que, após a separação, passou a usar seu sobrenome como pseudônimo: Colette.
Da metade do século 20 até o século 21, pipocaram um monte de obras autoficcionais. As escritoras agora se posicionam como protagonistas dos seus próprios escritos. Elas não precisam mais se esconder atrás de um nome fictício, elas não necessitam usar disfarces. Nada disso. Atualmente, elas fazem questão de ter suas caras estampadas em jornais. Elas dão entrevistas, aparecem em programas de televisão. São mulheres modernas, sexualmente liberadas, que se divorciam, vivem mil e uma peripécias. Todas elas trabalham, viajam, têm amantes, enfim, elas vivenciam ricas aventuras. Não precisam mais se esconder atrás de personagens. Elas são as heroínas dos seus próprios livros. É o caso da escritora francesa Annie Ernaux, que ganhou o prêmio Nobel de literatura, em 2022, pelo conjunto da sua obra, que é essencialmente uma autoficção.
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Na sua obra há relatos da sua infância e adolescência na França e outros mais contemporâneos, da sua nova vida em Maceió. Nos relatos franceses há um tom mais melancólico, enquanto nos brasileiros aparecem situações pitorescas e bem-humoradas. Essas nuances refletem sua forma de ver as diferenças culturais entre França e Brasil?
Realmente, são dois mundos completamente diferentes. Vivi meus primeiros 23 anos na França, que era ainda muito marcada pelas duas Grandes Guerras Mundiais. Minha família materna era do leste da França, perto da fronteira com a Alemanha. Nasci 11 anos após o fim da guerra. Cresci ouvindo relatos pavorosos de campos de concentração, de bombardeios, de trincheiras, de batalhas sanguinárias. Isso me marcou em demasia. Minha família era muito neurótica, muitos parentes meus eram tóxicos. Já aqui no Brasil, encontrei pessoas descontraídas, divertidas. O brasileiro tem um humor muito gostoso. A população é calorosa. Sinto-me tremendamente bem com o povo brasileiro. Amo visceralmente minha família brasileira. Aliás, meu adorado marido sempre me falou que a cegonha que me carregou errou o endereço do meu nascimento, era para eu ter nascido no Brasil, pois meu jeito de ser é muito brasileiro.
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Há quanto tempo você vive no Brasil? Sentiu um certo choque cultural? O Brasil a surpreendeu de alguma maneira?
Vivo em Maceió desde 1979. Em junho passado, completei 45 anos de vida no Brasil – dois terços da minha existência! Sou culturalmente brasileira. Na minha casa recebo amigos e ofereço pratos brasileiros como feijoada com torresmo. Meu jardim é repleto de helicônias. Escuto muita música brasileira, que amo de paixão. Adoro novelas da Globo, principalmente as antigas do Manoel Carlos. Acontece que permaneço intelectualmente francesa. Ou melhor: parisiense. Na hora de ler romances, compro prioritariamente livros franceses, de autores contemporâneos. A partir dessas leituras, vivencio a existência dos personagens franceses. É dessa forma que continuo conectada com os costumes do meu povo de origem. Dessa maneira, permaneço mentalmente francesa.
Nasci a oito quilômetros de Paris. Eu pegava um trem e, em dez minutos, já estava na capital. Passei três anos morando no centro de Paris; foi quando conheci meu marido alagoano. Quando ele me viu pela primeira vez, eu tinha apenas 21 anos e estava sentada num bistrô de um bairro boêmio de Paris. Eu era a única mulher numa mesa só de homens. Eu tinha os cabelos curtíssimos e liderava a conversa. Antônio ficou impressionado, me achou muito ousada. Acontece que, naquela ocasião, eu bebia um inocente suco de laranja. Não gosto de vinho e tomei minha primeira bebida alcoólica (uma cerveja) somente no Brasil, aos trinta anos.
Assim que cheguei aqui em Maceió, descobri que era impossível me comportar daquele jeito. O choque cultural foi imenso! Em Paris, costumava sentar sozinha, até de noite, a uma das mesas de botecos que ficam nas calçadas. Eu tomava um cafezinho, fumava cigarros e olhava o povo passeando. Antônio me revelou que era inaceitável – naquela época – uma mulher sentar sozinha num bistrô no centro de Maceió. Acredito que não mudou muito. Acho difícil uma jovem sentar desacompanhada numa mesa de bar da capital alagoana.
Ocorre que eu havia decidido viver para o restante dos meus dias ao lado do Antônio. Portanto, pouco a pouco, fui adotando os costumes e valores brasileiros. Melhor dizendo: fui assumindo um comportamento de matriarca alagoana. Brincando, sempre digo que aprendi a catar feijão, dessalgar charque e até tirar bicho do pé.
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Há uma linha condutora nas narrativas francesas relacionada aos impactos das Guerras no contexto social europeu. Na sua opinião, as guerras deixam marcas indeléveis nos indivíduos e na sociedade por elas atingidos? É possível superar esse trauma social?
Meus avôs vivenciaram duas Guerras Mundiais. Meus pais conheceram a Segunda. Fui criada cercada por sobreviventes traumatizados que me usavam como um recipiente no qual eles vomitavam suas recordações pavorosas. Meus parentes não fizeram tratamento psicológico, não era algo comum para as gerações anteriores a mim. O trauma atingiu igualmente as pessoas da minha idade, só que indiretamente. O MAL afetou todos os indivíduos dessa linhagem. Graças a Deus, consegui interromper esse lastimável costume: rompi o círculo vicioso. Não me comportei de forma abusiva com meus filhos. Tampouco revelei as barbaridades do passado aos meus descendentes. Se quiserem saber um pouco sobre a realidade dos seus antepassados, vão ter de ler meus livros.
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Em algumas histórias, percebemos que você é uma sobrevivente de alguns episódios. A literatura pode contribuir para sanar as feridas abertas, tanto nos escritores como nos leitores?
Sim, a literatura é um processo terapêutico, assim como uma psicanálise freudiana. Fiz análise durante muitos anos, cinco sessões por semana. Quando mergulho nas minhas recordações, para produzir um texto, procuro minuciosamente os termos mais corretos para descrever situações contundentes. A escolha e o uso criterioso da palavra falada, na terapia, curam o paciente. Do mesmo jeito, a pesquisa minuciosa do vocábulo, para descrever uma cena esmagadora, acaba também sarando o escritor. Alguns anos atrás, fui diagnosticada com um transtorno psicológico. Ocorre que, desde o início da redação das minhas memórias, tornei-me extremamente serena. Sinto que minha psique sossegou. Percebo o quanto meu eixo mental ficou alinhado. Da mesma forma, a leitura de certas obras me beneficiou cerebralmente. Modifiquei minha forma de enxergar o mundo através do comportamento de certos personagens. Quando escrevi No Lugar Do Morto, imaginei contribuir para a educação das crianças. Através do meu relato, descrevendo um assédio, espero alertar os pais sobre os abusadores com fachadas aparentemente idôneas e honestas.