Imagem
Menu lateral
Imagem
GZT 94.1
GZT 101.1
GZT 101.3
MIX 98.3
Imagem
Imagem
GZT 94.1
GZT 101.1
GZT 101.3
MIX 98.3
compartilhar no whatsapp compartilhar no whatsapp compartilhar no facebook compartilhar no linkedin
copiar Copiado!
ver no google news

Ouça o artigo

Compartilhe

HOME > notícias > CULTURA

Cavalo, uma alegoria das entranhas

Edson Bezerra discorre sobre os muitos significados do filme Cavalo, longa-metragem de Rafhael Barbosa e Werner Salles

"A linguagem do transe é a linguagem da memória". (Beatriz Nascimento)

Existe como que um sopro bastante alvissareiro na atual emergência do cinema alagoano, e, se a I Mostra Sururu de Cinema (2009), e ainda a (re)criação do Festival de Cinema de Penedo (2010) são marcos significativos, atualmente ele se aprofunda em diferentes linguagens e abordagens temáticas, em um movimento o qual, partido da cidade de Maceió, - o núcleo duro de nossa modernidade, - vai se espalhando e se adensando pelos agrestados e sertões, e, é neste contexto que se dá a emergência de Cavalo, e, sentimos  como que, através dele, pudéssemos vislumbrar não apenas a articulação de uma cadeia de economia criativa também alimentada,  através de lançamentos de editais, mas também, do aprofundamento de uma cinematografia, a qual, para além ou aquém de uma técnica de fazer cinema, em suas emergências também se encontra antenado para as particularidades locais, situando-se através deste olhar e narrativa, no horizonte temático também de outras emergências, e é justamente o que se vê, quando identificamos a emergência  de olhares rasurados a partir, da apropriação de narrativas que vêm sendo articuladas a partir de singularidades alagoanas e de seus de diferentes imaginários e temporalidades, identificamos ser justamente isto o que se desvela em Maré Viva (2011-2013) de Alice Jardim e Lis Paim; de Exu, para além do bem e do mal (2012) de  Werner Salles; Entre Céus (2014) de  Alice Jardim; de Cidade Líquida (2015) de  Lays Araújo; de O Que Lembro, Tenho (2015) de Rafhael Barbosa; de Sobrevivências (2015) de Pedro da Rocha; Imaginários Urbanos (2017) de Glauber Xavier; do vídeo-clips Povo de Exu (2015) e Caminhos de Exu (2020) de Henrique Oliveira, e, de Colapsar (2019, direção coletiva), e, ainda, da construção de uma espécie de uma estética do agreste que vêm ganhando corpo a partir da estruturação de um fazer cinema em Arapiraca , e através do avolumado desta produção, identificarmos nesta cinematografia emergente, a qual, em suas diferentes narrativas, vem sendo articulada a partir de um olhar voltado para o local.

Leia também

Todavia, que se ressalte, todas estas narrativas, para além (ou por dentro) de seus  apuros técnicos, têm em comum a construção de se serem as suas narrativa articuladas a partir de um olhar alegórico, fragmentado, e, com raras exceções, narrativas não-tencionadas por sobre o local, e, no que apontamos esta particularidade, identificamos justamente aí, - em suas narrativas alegóricas, fragmentadas e não-tensionantes, as suas diferença no que se refere a Cavalo, justamente no que ele em suas alegorias e  hibridismo, tenciona e se articula - como adiante identificaremos, - a partir de uma totalidade.

Com este entendimento, podemos perceber que a montagem de Cavalo, vai se articular a partir de um duplo movimento de aprofundamento e ruptura no que nós alagoanos temos de mais profundo em nós mesmos, pois, com ele, estamos diante de um encontro, não de um encontro qualquer, mas enquanto um terminal de uma busca, pois, sendo Werner Salles, juntamente com Celso Brandão e Pedro da Rocha, um dos pais fundadores do moderno cinema alagoano, já desde algum tempo que ele, Salles, assim como aqueles outros, vem se havendo com as entranhas das Alagoas, e, a ser verdade a existência do que já há algum tempo estamos identificando de uma Alagoas Profunda - aquela composta por negritudes, etnias índias, de todo o acervo de culturas populares, das preciosidades de nossa cultura erudita, e  do rico repertório das nossas tragédias históricas - que, desde os seus primeiros filmes tanto Salles, Pedro da Rocha e Celso Brandão, cada um a seu modo, e para além de uma linhagem evolutiva, vêm, cada um em suas particularidades, ou se exercitando nas técnicas do fazer cinema, ou, intensificando a radicalidade na busca do que possa ser Alagoas, e, quanto a isto, os registros de um Papa Sururu, de Celso Brandão, ou do fragmento etnográfico de Mestre Zome (1998) de Pedro da Rocha, são exemplares de uma busca, de resto, inapreensível e agônica.

Cavalo não é apenas um filme de maturidade de Werner Salles e Rafhael Barbosa , e, sendo clareira, - guardado as diferenças de escritas e temporalidades, me arrisco a afirmar que,  que ele está para a cinematografia alagoana do mesmo modo como a escrita de Canais e Lagoas esteve para o pensamento social alagoano, e,  cada um seu campo e temporalidades, têm o significado de serem escritas de rupturas tendo ambos no comum das rupturas, revelando-se no aparecer de um novo campo discursivo.


				
					Cavalo, uma alegoria das entranhas
FOTO: Reprodução

De um certo modo, em sua narrativa articulada a partir das ancestralidades afro-alagoanas, nos relembra uma outra, a de Barravento (1962) o primeiro filme dirigido por Glauber Rocha,  e um dos filmes iniciático do Cinema Novo, quando ali,  pela primeira vez  o Candomblé se permitiria ser filmado em toda a sua força de potência dionisíaca; identificação e aproximação que também se assemelha por conta da nudez selvagem - como também em Cavalo - da atriz Luíza Maranhão em nudez selvagem e nua em um cenário repleto de ventanias por dentre coqueirais.

Todavia, para além das semelhanças temáticas, as diferenças se acentuam, posto que, se a questão da negritude em Barravento é periférica, em Cavalo ela se torna o ponto focal a partir do qual, vai se desenvolver toda uma abordagem subterrânea de uma identidade afro-lacustre, ficando o comum entre ambos, por parte da abertura comum no que se refere às emergências e das problemáticas de suas temporalidades.

Que se ressalte, não ser de agora que os territórios e as ambiências lacustres vêm servindo para cenários cinematográficos. Desde a montagem de Casamento é Negócio? de Guilherme Rogatto, lá pelos idos de 1933, que as paisagens e as ambiências lacustres vêm servindo para a montagem de enredos cinematográficos, e isto, desde o minimalista Reflexos (1974); de A Feira do Passarinho (1975), Memória da Vida e do Trabalho (1984) a Papa Sururu (1989), de Celso Brandão; como ainda, para as ambiências de Mirante Mercado (2004), de Hermano Figueiredo;  para o memorialismo de Relicários de Zumba (2014), de Vera Rocha; para a montagem de Cidade Líquida (2015), de Lays Araújo; de Imaginários Urbanos (2017) de Glauber Xavier para a construção coletiva de Corpo D?Água (2018), do cinema denúncia de Saneamento Trágico (2018 de Zazo, e, finalmente, para A Barca (2019), de Nilton Rezende.

No entanto, qual a novidade de Cavalo em comparação com as narrativas lacustres acima identificados?

Dentre outras, algumas  diferenças, estão em sua ruptura para com o estilo quase sempre etnográfico da maior daqueles filmes, pois, se em Casamento é Negócio? o cenário lacustre é um mero registro histórico; e se em Reflexos as ambiências lacustres aparece enquanto artefato de mera contemplação estética, aparecendo enquanto registro etnográfico tanto em A Feira do Passarinho, como em o Papa Sururu,  e enquanto um recorte de uma historicidade em  Memória da Vida e do Trabalho de Celso Brandão; a exceção do cinema denúncia de Saneamento Trágico, algo semelhante também se sucede com as narrativas de Mirante Mercado,  Relicários de Zumba, de Cidade Líquida, Corpo D?Água, Imaginários Urbanos  e A Barca, acentuando-se entre estes dois últimos, a montagem tensionada entre temporalidades e entre espaços do primeiro e a delicadeza estética do segundo.


				
					Cavalo, uma alegoria das entranhas
FOTO: Reprodução

				
					Cavalo, uma alegoria das entranhas
FOTO: Reprodução

Na verdade, diante das imagens e das falas de Cavalo, podemos identificar ser a sua escrita,  uma escrita transdiscursiva, no sentido de que, toda a narrativa do filme nos remete para uma temporalidade e para um discurso, o qual, em muito, extrapola os seus autores (diretores), os quais,  falando-nos através de uma tradição - as dos negros e de suas  religiosidades - o filme se tornou capaz de atravessar temporalidades (que se atente para as narrativas do hip-hop) ,e, explodindo, produzir algo como que  entreespaços e entretempos, e através deles, podemos nos sentir como que, tocados, posto que, como diria Benajamin:

Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera.

Acredito ser  este apelo e esta espera que Cavalo nos revela e provoca, pois, diante dele nós nos encontramos como que, diante de uma estética afro-lacustre e de todo a revelação e desentranhamento que ela possa nos despertar, pois, é justamente este o fascínio que nos instiga ao escutarmos o suave canto de negritudes por dentre os canais, nas beiradas de Santa Luzia do Norte, território quilombola e de Mestre Zumba, e  a performance do rap nos planaltos de Coqueiro Seco; ou ainda,  a canoa singrando sob um cenário noturno da  Mundaú sob uma tempestade,  e a emblemática e originária celebração do ritual da Nana dentro das lamas e mangues da Mundaú, ou ainda ainda, na cantoria dos versos do hip-hop dos jovens negros palmarinos.

Todavia, se nas entranhas do filme poderemos como que sentir os rastros e as sombras de Canais e Lagoas e Calunga, o filme se coloca para além de qualquer tragédia, pois, o que nele está colocado, são as presenças de corpos se abrindo aos desejos de se estar no mundo e, durante toda a sua narrativa, o passado está como que, o tempo todo rasurando e invadindo o presente, e então, poder-se-ia pensar estar-se nele, em uma espécie de um duplo.


				
					Cavalo, uma alegoria das entranhas
FOTO: Reprodução

Poder-se-ia pensar que no filme existe algo como que a presença de um duplo movimento, duplicidade através do qual o passado está sempre a invadir o presente, e é justamente este tipo de movimento - o da invasão do passado no presente - que faz de Cavalo ser um filme de ruptura para com toda a cinematografia alagoana, pois, se os imaginários das águas já desde sempre foram tematizados, ele, Cavalo, ao delas se apossar, as faz de uma maneira como que ontológica, e, a partir de uma apropriação da mistura de barro e lama em seu prólogo, ele se abre para metaforizar a origem de um mundo , e a partir daí, o que se vê, durante o hibridismo de sua narrativa, são corpos nômades em busca da vida, rizomas, e, todos eles, por aqui jogados, sentindo, em seus corpos, uma presença situada por dentre o particular das imagens lacustres, e, neste entranhamento, as águas e as paisagens estão, não apenas enquanto cenários, mas, elas, águas e paisagens, entranhadas durante toda a narrativa, estão como que, sujeitando os corpos e moldando-lhes a vida; e se a vida, qualquer que seja ela, desde sempre esteve mergulhada em hibridismos, tanto no prólogo como em seu epílogo, o que se vê são os corpos molhados e nascendo escorregadios diante do espanto de estar-se no mundo, e é justamente esta a cena terminal do filme com a bailarina desnuda nascendo das águas sob o terror de nascer.


				
					Cavalo, uma alegoria das entranhas
FOTO: Reprodução

Aprofundando o já dito, na verdade, Cavalo é um filme cuja narrativa, dentro outros propósitos, é também ele, uma proposta de re-encantamento do mundo, pois, se um dos traços marcantes da modernidade vai ser justamente os processos de instrumentalização da razão e desencantamento do mundo e o entorpecimento dos sentidos, Cavalo se revela enquanto uma proposta a contrapelo de uma racionalidade instrumental, e, neste sentido, a partir de uma proposta de  re-encantamento do mundo e ao se  apropriar e incorporar em sua narrativa o que existe de mais primitivo em Alagoas -  as paisagens lacustres e as nossas afro-alagoanidades - toda a sua narrativa nos remete para uma espécie de pensée sauvage , no entendimento de que, sendo as culturas negras, culturas dionisíacas , posto que musicais, toda a narrativa do filme é um convite não apenas re-encantamento, mas também, da desconstrução de uma racionalidade instrumental, enquanto uma característica fundante dos processos de modernização em seus múltiplos processos de racionalidade.

Pensando assim, a articulação de suas narrativas a partir da presença  dos panteões da religiosidade africana, dele podemos dizer ser um registro das vivências da diáspora dos negros palmarinos, diáspora que permanecerá enquanto uma espécie de ponto nodal, e através de suas alegorias vazadas, toda o seu enredo e escrita imagética vai se articular atravessada pelas manifestações primitivas e arcaicas dos orixás, de suas oferendas e cantos, e, a partir destes pontos, dialogar com as emergentes manifestações culturais da juventude periférica, pois, é justamente isto o que se infere através dos versos tecno-pop e nas performances dos corpos negros no contorcionismo do hip-hop, ou nas narrativas de suas cantorias urbanas:

 (...) os pretos estão se armando, é rap alagoano, os palmarinos estão chegando, os pretos estão se armando (...) 


				
					Cavalo, uma alegoria das entranhas
FOTO: Reprodução

Resta lembrar por aqui que, para se tornar Cavalo e se alinhar os sentidos à chegada do Santo, teremos, todos, de um certo modo, de nos pegarmos das nossas impurezas, para somente então sentir através da força dionisíaca do Santo, o mundo enquanto um fluxo em sua pulsão de vida, e de uma vida para além de nossas pulsões de morte, e assim: Avé Cavalo, e que assim seja.

Axé.

*Especial para a Gazetaweb. Edson Bezerra é doutor em Sociologia, mestre em Antropologia e professor da Uneal (Universidade Estadual de Alagoas). Além de militante, artista e articulador cultural, é o autor do Manifesto Sururu (2004), autor do projeto Xangô Rezado Alto (2012) e ainda, juntamente como o turismólogo Ernani Viena Neto, autor da proposta que fundamentaria a consagração do Sururu como patrimônio imaterial de Alagoas.

App Gazeta

Confira notícias no app, ouça a rádio, leia a edição digital e acesse outros recursos

Aplicativo na App Store

Tags

Relacionadas