
Terra de Nise da Silveira, médica que humanizou e revolucionou a forma de tratar pessoas com transtornos mentais no Brasil e no mundo, Alagoas corre, atualmente, para suprir os vazios assistenciais existentes na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e cumprir o que preconiza a Lei Antimanicomial (Nº 10.216/2001), também conhecida como Lei de Reforma Psiquiátrica, que torna a internação uma exceção e preconiza que os pacientes psiquiátricos sejam cuidados com respeito, sem serem submetidos a práticas arbitrárias e degradantes.
Para que a lei seja, definitivamente, cumprida, é preciso investimento, mudança de paradigmas e ações efetivas que não só ampliem a rede de atendimento a pacientes psiquiátricos nos municípios alagoanos, mas transformem o único hospital psiquiátrico público de Alagoas, o Portugal Ramalho, em um hospital geral com leitos de saúde mental. Alguns passos já têm sido dados nesse sentido, mas ainda há muito o que ser feito.
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De acordo com a superintendente de Atenção Psicossocial da Secretaria de Estado da Saúde (Sesau), Teresa Moura Tenório, a RAPS é composta por atenção básica, CAPS, unidades de acolhimento, leitos de saúde mental em hospitais gerais e residências terapêuticas. E o trabalho, por parte da pasta, tem sido focado na ampliação de todos esses espaços que possam receber, de forma digna e humanizada, os pacientes com transtornos mentais.
Para se ter uma ideia, Alagoas conta hoje somente com 31 leitos de saúde mental em hospitais gerais, que ficam nos municípios de Capela, Rio Largo, Teotônio Vilela e Murici. “Os atendimentos psiquiátricos precisam ser feitos na rede e não mais em um hospital psiquiátrico, pois esse é um modelo que não está alinhado com a política nacional e nem com os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. O Hospital Escola Portugal Ramalho precisa ser desconstruído”, pontua Teresa.

Ela destaca que existe em Alagoas uma força tarefa formada por diversos órgãos, como Defensoria Pública Estadual (DPE), MInistério Público Estadual (MPAL), Defensoria Pública da União (DPUP), Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ/AL) e secretarias, que vêm atuando para mudar os fluxos e regulações, implantar serviços e capacitar profissionais, ampliando e fortalecendo a RAPS.
Exemplo desse esforço são as sete residências terapêuticas já em funcionamento na capital alagoana, que promovem o cuidado em liberdade para 70 pessoas. E elas nada mais são que moradias na comunidade, para até dez pessoas cada, e que estão vinculadas ao CAPS, recebendo o apoio de cuidadores e profissionais de saúde. Outras oito residências do tipo estão em processo de implantação em Maceió.
Apesar de todos os avanços, Teresa cita que muitas são as dificuldades. Um dos desafios de implantar uma rede eficiente de atendimento psiquiátrico, por exemplo, é o período de funcionamento dos CAPS, que precisa ser de 24 horas, o que não ocorre hoje.
“Precisamos melhorar, com certeza. Reconhecemos os desafios sobre os vazios assistenciais em algumas regiões, a necessidade de qualificação dos serviços e de seus profissionais e as dificuldades na atenção à urgência e emergência. Mas, ao mesmo tempo, vejo que estamos num momento ímpar, pois há uma união de esforços para ampliar a RAPS e um reconhecimento de que a saúde mental precisa ser valorizada. Hoje, reconhecemos, uns mais, outros menos, numa correlação de forças econômicas e ideológicas, que as estruturas manicomiais presentes no estado precisam ser superadas para garantir o bem-estar, os direitos humanos e o tratamento digno das pessoas em sofrimento mental”, afirma Teresa.
Portugal Ramalho é referência, mas precisa de adequações
Inaugurado em 1951, o Hospital Escola Portugal Ramalho (HEPR) é a única unidade de saúde pública para atendimento exclusivamente psiquiátrico. Funcionando 24 horas, ele é vinculado à Universidade de Ciências da Saúde de Alagoas (Uncisal), contando com 160 leitos para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e situações de urgência e emergência psiquiátrica. Referência quando se fala em atendimento psiquiátrico no estado, o modelo de funcionamento existente na unidade não deveria mais existir.
Para se ter uma ideia, do total de internos no HEPR, 21 leitos são ocupados por pacientes que residem, de forma definitiva, na unidade de saúde, após terem sido abandonados e perderem as referências familiares. Eles entraram lá para receber um atendimento médico adequado e nunca mais saíram.
O residente mais antigo está na unidade há 31 anos e meio. Trata-se de um homem de 60 anos que tem nos demais internos e na equipe multidisciplinar a sua “família”. Uma pessoa que pouco ou nenhum conhecimento tem do mundo “aqui fora”. Além dele, também há um homem que reside no hospital há 18 anos; quatro que estão lá há 16 anos; uma mulher que mora no Portugal Ramalho há 13 anos e outra que reside no leito há 10. Outras treze pessoas que moram na unidade de saúde em um período compreendido entre um e oito anos, completam a lista.
Muito têm-se falado sobre o fim dos manicômios para que possa ser efetivada, de fato, uma Rede de Atenção Psicossocial em Alagoas. Mas, para isso, é preciso não só ampliar a assistência ofertada aos pacientes, mas também mudar o pensamento da população quando o assunto é doença mental. Mesmo depois de tantos anos dos ensinamentos repassados por Nise da Silveira, um estigma social impede a aceitação das pessoas que sofrem com problemas psicológicos na sociedade. É como se elas fossem condenadas a viver em situação de exclusão, trancadas em um quarto de hospital, sem nenhuma perspectiva pós-tratamento.

Além do hospital propriamente dito, a Uncisal também gere o Centro de Atenção Psicossocial CAPS Casa Verde, o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSAD) e o Ambulatório de Saúde Mental. Derivalda conta que, inicialmente, é feita a classificação de risco pela Enfermagem, por meio da qual é identificada e classificada, através de cores, os pacientes que precisam de tratamento imediato, de acordo com o potencial de risco, agravos à saúde ou grau de sofrimento. “A necessidade de internação é avaliada pelo psiquiatra do plantão de emergência em situações de crises psiquiátricas com necessidade de atendimento imediato, em condições em que o usuário apresenta ameaça à própria vida ou de terceiros”, afirma.
Ela ressalta ainda que os maiores motivos de internamento nos últimos nove anos do HEPR foram esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e transtornos delirantes (6.408); transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de substâncias psicoativas (3.963) e transtornos do humor - afetivos (1.707). Lá, os internos são submetidos a diversos tipos de tratamentos, terapias e atividades socializadoras.
Medo e isolamento
Como se não bastassem todos os desafios enfrentados diariamente pelos profissionais que atuam no Portugal Ramalho, nos últimos anos, um novo problema surgiu. Situado no bairro do Pinheiro, área afetada pelo afundamento do solo provocado pela atividade mineradora da Braskem, o hospital tornou-se um equipamento isolado, com poucos locais funcionando no seu entorno.
Com o anúncio do colapso da mina 18 no final de 2023, a situação ficou ainda mais complicada e os profissionais passaram a atuar com o medo não só do isolamento, mas de ocorrer uma tragédia. Alguns deles, inclusive, se afastaram dos trabalhos na unidade após terem a saúde mental afetada pela situação. De acordo com Derivalda, o hospital conta hoje com 503 servidores.
“Os principais desafios no atendimento aos pacientes são a estrutura de construção antiga, que não atende às regulamentações de RDC 50. Além disso, estamos em área de subsidência do solo [área de criticidade], o que tem afetado a saúde mental dos profissionais de saúde da unidade. Tem também as áreas desertas no entorno do hospital, que tem deixado os servidores e familiares expostos a riscos relacionados à integridade física, material e mental. Relatório médico de um dos servidores aponta para ‘paciente com ansiedade, crises de choro e medos frequentes, recusando-se a ir ao trabalho no HEPR com receio de que aconteça afundamento do hospital e venha a falecer”, conta Derivalda.
Diante dessa situação, o desejo é que haja a realocação da unidade para um local seguro e adequado. Segundo a diretora da unidade, existe uma Minuta de Acordo, em fase de finalização das tratativas, para a entrega de um equipamento pronto, na Câmara de Prevenção e Resolução Administrativa de Conflitos da Procuradoria Geral do Estado. “O terreno proposto fica no bairro do Jaraguá. O projeto arquitetônico teve a participação dos entes envolvidos e representantes da empresa Braskem, que aprovaram os documentos composto por quatro pranchas, com edificação principal; bloco de ensino e pesquisa; bloco de apoio às terapias, e as alas”, destaca.
A diretora do Portugal Ramalho afirma, ainda, que existe uma articulação com o Ministério da Saúde, para que o Hospital torne-se uma unidade de Emergência Psiquiátrica de permanência breve, de até 72 horas. “Para tanto, seria necessária a implantação de mais leitos de saúde mental em hospitais gerais, CAPS III, residências terapêuticas, entre outros dispositivos da RAPS para onde possamos encaminhar o usuário após a estabilização da crise. Serão criadas linhas de cuidado nessa perspectiva. Portanto, as estratégias de desinstitucionalização, como os serviços residenciais terapêuticos para os 21 moradores do HEPR, entre outros, como moradores da Casa de Saúde e Clínica de Repouso Ulysses Pernambucanos, precisarão ser implantadas”, diz a diretora do Portugal Ramalho.

Centro Psiquiátrico Judiciário deve parar de funcionar até agosto
O Centro Psiquiátrico Judiciário (CPJ) Pedro Marinho Suruagy, situado no Sistema Penitenciário de Maceió, está com os dias de funcionamento contados. Em cumprimento à Política Antimanicomial do Poder Judiciário, instituída pela Resolução CNJ nº 487/2023, a data-limite para o fechamento de estabelecimentos, alas ou instituições congêneres de custódia e tratamento psiquiátrico em todo o Brasil vence no próximo dia 28 de agosto. Em Alagoas, a expectativa é que haja o cumprimento da determinação dentro da data prevista.
Diversos órgãos, como as Secretarias de Estado da Ressocialização e Inclusão Social (Seris), de Saúde (Sesau), de Assistência e Desenvolvimento Social (Seades) e da Fazenda (Sefaz), além da Procuradoria Geral do Estado (PGE), estão emanando esforços nesse sentido.
Atualmente, o Centro Psiquiátrico Judiciário conta com 68 pessoas sob custódia, sendo 66 homens e 2 mulheres. Para que o local seja esvaziado, audiências mensais têm sido realizadas com o objetivo de buscar uma alternativa para a reinserção deles na rede de saúde, de assistência e também no contexto social. “As audiências onde são concedidos os alvarás de soltura estão acontecendo todos os meses e a previsão é que todos estejam desinstitucionalizados até agosto”, informa o Poder Judiciário.
Em setembro do ano passado, o CPJ foi interditado parcialmente após decisão da 16ª Vara Criminal da Capital, em cumprimento à Política Antimanicomial. Desde então, o local não está mais admitindo novos custodiados, sendo a internação compulsória cumprida em leito de saúde mental em hospital geral ou outro estabelecimento de saúde pública referenciado pelo Centro de Atenção Psicossocial da Rede de Atenção Psicossocial. O local para o qual a pessoa com transtorno mental em conflito com a lei será encaminhada é determinado pelo juiz que decreta a sentença.
De acordo com a Secretaria de Estado de Ressocialização e Inclusão Social (Seris), os custodiados que encontram-se atualmente na unidade têm recebido tratamentos que fazem parte do processo de ressocialização, como a praxiterapia - que utiliza o trabalho como terapia - e o artesanato. Os custodiados na unidade recebem o apoio de uma equipe multidisciplinar composta por 38 profissionais, entre eles, psiquiatra, assistente social e psicólogo.
De acordo com a superintendente de Atenção Psicossocial da Secretaria de Estado da Saúde (Sesau), Teresa Moura Tenório, os atendimentos às pessoas com transtorno mental em conflito com a lei são realizados na Rede de Atenção Psicossocial dos municípios onde elas residem. Segundo ela, ao final de todo o processo, restarão, em média, 35 pessoas no CPJ. São pessoas que perderam vínculos afetivos e familiares e que serão transferidos para residências terapêuticas.
Lei antimanicomial
De acordo com a advogada e membro da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil em Alagoas (OAB/AL), Laura Fernandes, a Lei Antimanicomial (Lei 10.216/2001), também conhecida como Lei de Reforma Psiquiátrica, é fruto de diversas lutas de movimentos sociais compostos, sobretudo, por trabalhadores da saúde mental e pacientes, que desde a década de 1970 unem forças pelo direito de pessoas em sofrimento mental de receberem tratamento adequado, sem serem vítimas de violações de direitos humanos historicamente praticados sob o pretexto de devolver a sanidade a essas pessoas.
“A Lei elenca os direitos das pessoas em sofrimento mental e reorganiza a assistência em saúde mental, prevendo, por exemplo, que as pessoas sejam cuidadas com respeito, sem serem submetidas a práticas arbitrárias e degradantes, e prioriza que esse cuidado deve ser feito sempre que possível em liberdade e considerando o contexto de vida dos pacientes. Prevê, ainda, que a internação deve ser a exceção, sendo aceitável apenas em casos graves e pelo menor período de tempo possível, de modo que a pessoa consiga ter a sua saúde estabilizada e siga o seu tratamento em liberdade, enquanto recebe o apoio necessário para se reorganizar”, diz a especialista.
Ela ressalta que a Comissão tem participado das atividades do Grupo Interinstitucional de Trabalho Interdisciplinar de Saúde Mental do Poder Judiciário do Estado de Alagoas, que é o grupo que está à frente da implementação da Resolução n. 487/2023 no estado.
“Felizmente, o processo de desinstitucionalização de pacientes do Centro Psiquiátrico está caminhando bem. Desde o início das cerimônias de desinstitucionalização, vários pacientes já saíram do Centro Psiquiátrico através da interlocução entre os profissionais, as famílias e a rede de saúde, a fim de que haja a continuidade nos cuidados, já que a ideia não é apenas retirar as pessoas do hospital de custódia, onde as possibilidades de cuidado efetivo são reduzidas, mas promover, de fato, a melhoria na sua qualidade de vida, o que só é possível através de um trabalho multidisciplinar cuidadoso e coordenado”, diz Laura.
Ela ressalta que a resolução do CNJ é não só segura e necessária, mas urgente. “Trata-se de um grande avanço em um país cuja história é marcada por violações de direitos de pessoas com quadros de sofrimento e transtorno mental", diz.
E completa: "Estamos na terra de Nise da Silveira e o legado dessa grande psiquiatra não nos deixa mentir sobre como precisamos continuar avançando no campo da saúde mental, pois ainda há muito a ser feito. Nessa direção, a Resolução 487/2023 não apenas é segura e necessária, como é urgente, já que a Lei de Reforma Psiquiátrica existe há mais de duas décadas e seguia sendo ignorada no contexto dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, com raríssimas exceções. Com a resolução, o paciente receberá o tratamento indicado por profissionais de saúde, preferencialmente por equipe multidisciplinar”, completa.