
“Ter um filho transgênero não está no "menu" da maternidade! Você pensa nos perigos de sexo, drogas, gravidez indesejada, fracasso escolar, desorientação no mundo do trabalho, etc, mas não pensa na possibilidade de um filho pertencer ao gênero que não lhe foi designado biologicamente. Isso talvez fosse uma coisa interessante para se pensar em termos sociais: a importância de disseminar muita informação sobre o assunto (eu não sabia nada!) a ponto de naturalizar essa possibilidade na trajetória de um filho. Pode ser que seja Cis? Pode. Pode ser que seja homo, bissexual? Pode. Pode ser que seja trans? Pode”.Ana me contou que seu filho nasceu menina, mas que nunca foi uma menina “típica”, como ela mesma usa. Nunca gostou de roupas tidas como muito femininas e outros sexismos atribuídos às meninas na infância.
“Isso nunca me chamou a atenção, porque eu própria não sou uma mulher tipicamente feminina: estou sempre de jeans e camiseta, não uso maquiagem, salto alto, etc. Além disso lhe demos uma educação muito pouco marcada por gênero: teve vestidos e bonecas, mas também ganhou carrinhos, bolas de futebol e sempre foi uma criança vestida para seu conforto e incentivada a brincar com objetos e pessoas não por serem ‘coisas de menina’, mas por serem legais e despertarem seu interesse”.Nada em sua infância, segundo ela, parecia indicar algo a respeito de sua sexualidade ou gênero. Mas isso naquele momento. Hoje, ao olhar para trás, ela sente que várias questões estavam, sim, relacionadas a uma identidade cindida: timidez extrema, isolamento social, tendência a mentir ou esconder coisas. Como se sua criança estivesse presa num corpo que não correspondia à pessoa que ela experimentava. E essa, para ela, foi sua maior dor:
“Creio poder dizer que essa é a principal fonte da minha dor como mãe: imaginar o sofrimento dessa criança, que não tinha consciência do que se passava com ela, sofrimento do qual não tínhamos a menor noção, embora fôssemos pais MUITO presentes, afetivos e até excessivamente preocupados com o bem estar daquela nossa filha única”.Perguntei à Ana quando ela começou a perceber que seu filho era alguém diferente de quem, biologicamente, ele havia nascido.
“A questão da identidade de gênero, na verdade mascarada como sendo de orientação sexual, apareceu na puberdade, quando meninas e meninos passam a se vestir e se comportar de forma bastante estereotipada (e uniforme dentro dos grupos de gênero), o que era especialmente forte na escola burguesa e pseudo modernete em que estudava. O isolamento social tornou-se muito visível e difícil de lidar: as festinhas eram situações aversivas, não havia namorinhos no horizonte, aquela menina era considerada estranha e não se enturmava, nem com meninas nem com meninos. Nessa ocasião, começou a aparecer forte interesse por algumas meninas, que interpretamos como evidência de solidão e busca de uma ‘melhor amiga’, como todas tinham. Mas hoje é evidente que eram paixões adolescentes, que não podiam ser explicitadas, talvez nem para si mesmo”.Ana também me contou que a escola não soube lidar de uma boa maneira com a situação, acabando por isolar a criança.
“A escola deixa essas crianças [que não brilham, mas não vão mal o suficiente para atrapalhar a classe ou os professores] como mera ‘paisagem’ e se ocupa dos alunos ótimos ou dos péssimos… A orientadora nos chamou pra contar de uma carta de amor da minha filha a uma colega, como quem revela uma doença. Neste momento ficamos bem desnorteados, mas a condição de transgênero nem passou pela cabeça. Nossa pergunta era: será que ela é homossexual?”.Quem ajudou a família a passar por essa descoberta foi a terapeuta que o atendia desde criança e que, segundo Ana, foi muito cuidadosa ao pautar sua condição de transgênero de forma lenta, “...nos preparando para que o amor fosse maior que o susto”. Em um momento futuro, a outra escola em que ele estudou contava com um grupo de discussão sobre sexualidade e gênero, que ela considera muito importante. Especialmente a figura de uma professora que, segundo ela, foi fantástica: “... o pegou no colo e o ajudou a passar pela parte mais radical da transição”. Isso mostra justamente aquilo sobre o qual tanto falamos e as pessoas se esforçam por não ouvir: conversar sobre gênero na escola é fundamental, é insubstituível. É um meio eficiente para que crianças, adolescentes e jovens possam se descobrir e respeitar a si mesmo e aos outros, possam se proteger, possam se conhecer e ajudar os demais a também se conhecerem. Conversar sobre gênero é conversar sobre a vida que se pode ter, a vida que se quer ter, a vida que devemos permitir que os outros tenham. Para Ana, os principais desafios de ser mãe de uma pessoa trans são, primeiro, compreender a questão. Depois, entender que o processo é longo e cheio de passos difíceis. “Mudança de nome, mudança de gênero nos documentos, tratamento hormonal, eventualmente cirurgias. Também o ajuste da forma de tratamento, do feminino para o masculino (a gente custa pra acostumar e os erros ofendem!). Ainda, o enfrentamento do assunto com as pessoas do entorno”. Ana termina seu relato de uma maneira linda: falando sobre qual é o melhor presente para uma mãe.
“Depois de tudo isso, a maior realização: entender que ser transgênero não é escolha, não é invenção, não é modinha. É uma questão MUITO profunda, muito central na identidade da pessoa, muito essencial na construção de uma pessoa plena. Aquela menina insegura e presa dentro de si mesma se tornou um jovem pleno, feliz, realizado em todas as dimensões da vida. Vida fácil? Não, mas a vida não é fácil pra ninguém. Mas uma vida intensa, inteira, de verdade. Melhor presente para uma mãe”.A HISTÓRIA DE MARIA: "Um momento de alegria: eu fui ao cartório, com a cópia do processo, solicitar a nova certidão de nascimento do meu filho"

“Dom já havia se mudado de Brasília para São Paulo quando resolveu abrir com o pai e foi ele quem me falou. Meu mundo caiu, pois até aí sabíamos da sua homossexualidade. Numa vinda dele a Brasília, foi que conversamos. Ele me explicou como seria todo o processo de transição e aí eu senti muito medo de que esse processo lhe trouxesse danos físicos… Antes meu medo se resumia apenas a preconceito. Ele já havia iniciado o processo quando resolvi contar pra família (meus irmãos, sobrinhos…). Tive apoio incondicional do meu marido e de poucas pessoas da família… Até hoje não falo abertamente no assunto com alguns deles. Muito preconceito e uma boa pitada de fanatismo religioso”.Neste ponto, ao tocar na questão da religião, Maria conta algo muito surpreendente, que aproveito para ressaltar em função de sua relevância, especialmente numa sociedade que repete padrões e acha que todos os que são religiosos se comportam de uma mesma maneira:
“Por incrível que pareça, tive um apoio muito grande: de um padre da minha paróquia. Foi ele que me deu forças para abrir o jogo com as pessoas e me disse que era pra eu amar meu filho mais ainda a partir daquele momento… Que ele precisava muito de mim”.De todos os desafios, Maria acha que o principal foi o de contar para sua família sobre a identidade de seu filho. Ela preferiu reunir seus irmãos e contou. Naquele momento, recebeu o apoio de uma irmã, que é madrinha de seu filho, e de um irmão.
“Hoje outra irmã e outro irmão já pedem notícias do Dom. Minha irmã mais velha nunca pergunta… No começo isso me machucava, hoje não mais”.A maior dor que ela sente em função de ter um filho trans não diz respeito a ele, mas aos outros. Ela tem muito medo de que ele sofra preconceito e agressões físicas. E reconhece que a maior ajuda que a sociedade pode dar, aos filhos trans e suas mães, é se inteirar do assunto.
“Abrir mente e coração e procurar o que realmente acontece com uma pessoa trans. Dói muito quando a gente escuta alguém dizer que isso é safadeza, pouca vergonha. Pesquisei muito, li muitas matérias e estudos sobre o assunto”.Quando Maria contou sobre suas alegrias, eu também me emocionei. E me lembrei do dia que fui ao cartório, com minha bebê recém nascida nos braços, solicitar sua certidão de nascimento. Um documento que atesta, perante o Estado e os outros, que sua criança está viva e existe. Maria colocou como número 1 em suas alegrias ter ido ao cartório solicitar a nova certidão de nascimento de seu filho… É inevitável pensar que, para além de todo desafio, existe essa coisa muito simbólica: uma mãe que aceita, apoia e acolhe seu filho trans, o vê nascer duas vezes. Como outras alegrias que só viveu porque tem um filho trans, Maria aponta as seguintes:
“A felicidade dele a primeira vez que se olhou no espelho após a mastectomia total. O diploma de curso superior com o novo nome”.E quando ele conheceu sua esposa e decidiu viver com ela:
“Ali eu sabia que ele não estaria mais sozinho”.Eu não quis - e não quero, neste texto - incentivar o lado da dor, da dificuldade, dos inúmeros desafios que essas mães precisam superar, junto com seus filhos. Quis mostrar que existem algumas alegrias que vêm justamente do fato de que seus filhos se assumiram outras pessoas. Que isso não é uma coisa obrigatoriamente ruim como tantas pessoas pensam, pelo contrário: que conhecer-se, amar-se, deixar-se desabrochar e viver pode ser tudo aquilo que alguém precisa para ser, de fato, feliz. E pego emprestado as palavras de Ana:
“A maior alegria é hoje ver meu filho, completando 19 anos nesta semana, bonito, com cuidados com o próprio corpo, autoconfiante, seguro e super bem informado sobre sua condição de transgênero, cheio de preocupações com problemas sociais, bom estudante, morando sozinho e trabalhando, com uma namorada firme e muitas meninas interessadas no rapaz interessante que ele se tornou”.Por fim, lembro e reforço que essas duas histórias não refletem as imensas tristezas que grande parte das pessoas trans vivem, rejeitadas e abandonadas por suas famílias, sujeitas a violências das mais torpes, que tolhem suas vidas tão precocemente. Também enfatizo que não se trata de romantizar uma situação socialmente delicada e problemática. Mas de mostrar um outro lado sobre o qual a mídia de massa não tem interesse em mostrar. A mídia ajuda a produzir a realidade: se mostra apenas a dor, a dificuldade e o ódio, então a sociedade tende a ver apenas a dor, a dificuldade e o ódio. Palavras constroem realidades, já dizia Michel Foucault. Portanto, precisamos mostrar que, para além de todo o desafio, de toda a luta, de todo o ódio, de toda a complexidade social que as pessoas trans vivem, há a imensa possibilidade de duas vidas se encontrarem de maneira insubstituível, de mãe e filha, mãe e filho, se apoiarem como não seria possível de outra forma. Não tinha como intuito discutir a sociologia da transgeneridade, inclusive porque não tenho cacife para isso e há gente infinitamente mais preparada para isso que eu. O que quero, verdadeiramente, com esse texto é plantar uma semente de amor no coração das mães que, por ventura, estejam passando por isso e não estejam aceitando bem. Mostrar que o amor por um filho, por uma filha, precisa estar sempre de mãos dadas com o respeito por quem se é. Mostrar que é preciso que as pessoas trans não encontrem no coro de ódio contra elas as vozes de suas mães, de seus pais, de seus familiares. Que saibam que suas vozes serão ainda mais fortes se, junto, também ecoarem as vozes de suas mães. Porque “o amor sempre pode ser maior que o susto”. Ah sim, um último adendo. Quando você encontrar uma mulher grávida, lembre-se que há muitas outras coisas que você pode perguntar além do “É menina ou é menino?”. Inclusive porque há respostas que nenhum ultrassom é capaz de nos dar. Você pode substituir o “É menino ou menina?” por “Posso te ajudar de alguma forma?”, por exe. Fonte: Cientista que virou mãe