
Em um contexto jurídico e social em que o jusnaturalismo moderno e antigo não se adequam aos requerimentos de direitos humanos, como o ordenamento jurídico brasileiro, o juspositivismo é a maneira sistemática aplicada para entender e reger o caráter do direito, e assim sendo, cabem, especialmente, às leis civis e processual civil o empoderamento do ser humano como sujeito de direitos privados (GALLARDO, 2014, pp. 245 e 246).
Associar o direito privado aos direitos humanos é reconhecer que as lutas e conquistas sociais encabeçadas pela humanidade, inclusive dos grupos mais vulneráveis, têm como propósito alcançar a dignidade humana também através de direitos individuais. Por isso, direitos privados não devem ser vistos como antagônicos aos direitos coletivos, mas sim, complementares. Dessa forma, as leis civis e processual civil são pilares fundamentais no estabelecimento dos direitos humanos na sistemática jurídica a qual o cidadão brasileiro está inserido, e atuam como regulamentadores de robustos princípios constitucionais que têm como fonte os direitos humanos.
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Por exemplo, não se concretiza a dignidade humana em uma sociedade justa sem o devido respeito aos direitos civis. Para Luís Roberto Barroso, situação de relevante impacto dos valores constitucionais sobre o direito civil é justamente o respeito ao princípio da dignidade humana, partindo do contexto do término da Segunda Guerra Mundial, quando teve início a reconstrução dos direitos humanos, que se irradiaram a partir da referida dignidade da pessoa humana, referência essa que passou a constar dos documentos internacionais, como na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 e em outras constituições democráticas (BARROSO, 2020, pp. 348 e 348).
Já para Noberto Bobbio, os direitos humanos foram convertidos em um dos principais indicadores de progresso civilizatório (GALLARDO, 2014, p. 246).
O art. 1° do Código Civil Brasileiro, Lei n. 10.406, de 2002, diz que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. Logo na leitura do primeiro artigo dessa lei, temos um princípio fundamentado e fundamentador dos direitos humanos: o princípio da isonomia. Tal princípio aparece dentro da norma brasileira positivado primária e hierarquicamente pela Constituição Federal, em seu art. 5°, ao dispor que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, e dentre outros, do direito à propriedade.
Em uma leitura rasa, é possível compreender que por estar positivado no caput do maior artigo da Carta Magna, o princípio da isonomia é influenciador a todos os outros princípios e direitos fundamentais dispostos nos incisos do art. 5°. E por isso, o seu reflexo em todos os ramos do direito, sobretudo direito civil e processual civil, é inevitável.
Por sua natureza jurídica, a aplicação e efetividade do princípio da isonomia é fundamental para atenuação de desigualdade social, e as leis civis e processual civil são essenciais à essa função. Quanto mais desigual é uma sociedade, mais reivindicado deverá ser o princípio da isonomia, e tal reivindicação deve permear em todos os poderes estatais, e esses devem homenagear a igualdade no exercício da tutela jurisdicional, no poder-dever de legislar e no ato de administrar a coisa pública.
O Código do Processo Civil dispõe que o princípio da isonomia também aparece no processo civil, devendo tanto a legislação quanto o juiz garantir no processo uma paridade de armas, prevista no art. 139, inciso I, como forma de manter equilibrada a disputa judicial entre as partes. Entretanto, a isonomia no processo civil não pode se esgotar como aspecto formal, devendo ser observada a equidade entre as partes, como, por exemplo, a concessão do benefício da justiça gratuita somente à parte hipossuficiente (NEVES, 2022, pp. 197 e 198).
Outra intersecção entre direitos humanos e direito privado é o direito de propriedade, consagrado como direito fundamental pelo art. 5º, incisos XXII a XXVI. Nessa norma que garante ao cidadão o direito de propriedade, é disposto que a propriedade atenderá a sua função social. Isso significa que o indivíduo tem o direito a construir o seu patrimônio, mas essa propriedade deve cumprir a sua função social, de forma que o proprietário deve respeitar limitações de direito público (desapropriação, requisição, ocupação temporária) e limitações de direito privado (direito de vizinhança, direito de preferência).
John Locke, um dos filósofos idealizadores dos direitos humanos, entendia que o principal objetivo das sociedades políticas sob a tutela do Estado é a preservação dos direitos à vida, à liberdade e à propriedade (RAMOS, 2021, p. 44). Em sua idealização dos direitos humanos, Locke trouxe a ideia de que a função da governança (Estado) é tanto a proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos quanto a proteção desses direitos dos indivíduos contra o próprio Estado.
Já o objetivo do direito de propriedade não se restringe aos interesses egoísticos do seu titular, mas sim é vinculado ao interesse de toda coletividade. (RAMOS, 2021, pp. 845 e 846). Assim, o direito de propriedade é uma espécie de direitos humanos, sendo um direito privado, e que é positivado como um interesse individual que deverá atender à coletividade.
Portanto, vultosa é a participação dos direitos humanos nas normas que regem o direito civil e direito processual civil no Brasil, sendo o princípio da isonomia o maior catalisador dessa interseccionalidade. É notável e louvável que essas leis codificadas militam em favor dos direitos humanos.
É necessário fortalecer o ser ante o dever ser da dogmática do direito civil, do direito processual civil e dos direitos fundamentais como um todo, uma vez que está ultrapassada a barreira do juspositivismo e a conquista da fundamentação dos direitos humanos. Conquista essa advinda da evolução sociocultural e de ser o Brasil um país signatário do Tratado de Direitos Humanos, além de ter um novo Código Civil após a ditadura militar – que normatizou direitos humanos dentro do código em razão do contexto histórico e político daquele período. Assim, deve-se proteger a efetividade do princípio da isonomia, uma vez que as garantias de seu cumprimento continuam a ser o principal desafio.
POR JOSÉ PEDRO DANTAS DE MORAIS.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GALLARDO, Helio. Teoria crítica: matrizes e possibilidades de direitos humanos. 1ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 9ª edição. São Paulo: Editora Saraiva Educação, 2020.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil: volume único. 14ª edição. Editora Juspodivm, 2022.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 8ª edição. São Paulo: Editora Saraiva Educação, 2021.
BRASIL. Constituição Federal. Brasília, 5 de outubro de 1988.
BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil Brasileiro. Brasília, 2002.
BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, 2015.
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