
A espera por O Eternauta teve o sabor raro das promessas antigas — uma esperança mantida à meia voz pelos corredores virtuais dos canais dedicados às HQs. Eu, que não havia lido a obra argentina original, esperei. E não me arrependi. O que recebi foi mais do que uma série de ficção científica: foi um relato profundamente humano sobre a resistência diante do fim, uma história contada com imagens secas, porém densas, como os poemas sem gordura de João Cabral de Melo Neto.
A BUENOS AIRES DE UM INVERNO MORTAL
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O diretor Bruno Stagnaro, conhecido por seu realismo cortante, não tentou imitar os padrões hollywoodianos — e fez bem. Sua Buenos Aires devastada por uma neve venenosa, com ruas cobertas de cadáveres serenos, tem a atmosfera dos textos de Borges: um sonho austero, que incomoda e fascina na mesma medida. Tudo é cruelmente real — os corpos, as máscaras improvisadas, o medo coletivo. Não há exageros pirotécnicos. Há, sim, uma humanidade crua em cada plano, expressa sobretudo nos olhos dos personagens, na espera angustiada pelo que vem depois.
RICARDO DARÍN E O SILÊNCIO COMO RESISTÊNCIA
A escolha de Ricardo Darín para interpretar Juan Salvo, veterano das Malvinas nesta adaptação, poderia soar óbvia. Não foi. Foi certeira. Darín domina não pelo excesso, mas pela economia expressiva: seus silêncios dizem mais do que discursos inteiros. Seus olhos são janelas para o que resta de humanidade numa paisagem desolada. É o peso do mundo carregado sem dramas evidentes. Ele conduz o espectador pela mão, sem pressa, revelando o heroísmo silencioso e coletivo que Oesterheld propôs décadas atrás em sua obra original.
HERÓIS COLETIVOS, VILÕES IMPROVÁVEIS

Uma surpresa da narrativa é o constante desafio às expectativas do público. Esperamos vilões previsíveis e não os encontramos. Encontramos gente como nós — humanos em seu desespero — que hesitam, quase sucumbem, mas que no final optam pela solidariedade, pela resistência conjunta. Essa decisão narrativa honra a essência da HQ de Oesterheld, que via na união popular uma resposta à opressão e à barbárie. Não há super-heróis isolados; há apenas pessoas comuns tentando sobreviver juntas — e é isso que faz O Eternauta ser mais do que entretenimento.
UM RETRATO LATINO-AMERICANO DE HUMANIDADE E HORROR
Tecnicamente impecável, a série desafia a ideia de que a catástrofe pertence apenas ao Norte Global. Em O Eternauta, o apocalipse acontece aqui, no nosso continente, entre os nossos. E isso faz toda a diferença. Ao vermos Buenos Aires reduzida à ruína, sentimos o peso da identificação direta, longe das metáforas estrangeiras. O terror, a empatia e a esperança ganham contornos inéditos para quem assiste daqui.
A produção argentina da Netflix faz mais do que sucesso comercial. Ela consegue capturar e amplificar a mensagem política da obra original: ninguém se salva sozinho. Em tempos de fragmentação social e crise global, essa mensagem ecoa com força incomum. A série mantém vivo o legado de Héctor Oesterheld — desaparecido pela ditadura militar argentina — e atualiza sua crítica social para um público contemporâneo, mostrando que, diante da ameaça externa ou interna, a resistência coletiva é nosso recurso mais valioso.

Em sua essência, O Eternauta é um poema cru e poderoso sobre a condição humana em tempos extremos. Uma lição sobre solidariedade, sobre o valor do olhar atento e do silêncio expressivo. Acima de tudo, uma lembrança incômoda e necessária de que, mesmo diante do fim, é possível resistir.
Confira o trailer de O Eternauta: