
Em cada cômodo do espaçoso apartamento há estantes com livros. Os calhamaços estão na sala, onde Paloma curte a brisa maceioense em uma simpática cadeira de balanço. Paloma, cabe explicar, é uma das gatas de Sidney Wanderley. Há uma segunda felina na casa, outra companhia inseparável do maior poeta vivo de Alagoas, chama-se Dóris. Enquanto a reportagem adentrava a residência, ela enfiou-se entre as prateleiras do escritório, atraída, quem sabe, pela obra completa de Jorge Cooper. É justamente ali que o escritor guarda as preciosidades de sua coleção, que já chegou a contar com seis mil títulos.
Sidney Wanderley acaba de lançar ‘Poesia etc.’, primeira obra após o anúncio de que interromperia sua produção poética, há três anos. Abster-se de cravar rimas, no entanto, não quer dizer evitá-las. O alagoano está lendo como nunca, escrevendo também. Mas nada de lançar-se ao mar revolto da poesia sozinho, por si. Agora, revela, prefere viajar na loucura ou lucidez dos outros.
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Para a sorte dos fiéis leitores, neste novo livro, Wanderley compilou o que mais tem lhe provocado em poemas e obras literárias de diversos grandes nomes da poesia brasileira e mundial. De Drummond a Bashô. Com o humor e ironia agudos que embebiam seus versos de outrora.

Sidney Wanderley nasceu em Viçosa, cidadezinha do país das Alagoas, como versava Théo Brandão. Terra conhecida por sua intelectualidade e pobreza. O poeta permaneceu na chamada “Atenas alagoana” até os quinze anos. Aos quatorze, no entanto, já costumava ler clássicos da literatura universal, sob a influência do padrinho, o poeta parnasiano José Aragão — um farmacêutico que ainda era radioamador e foi até vereador na pequena cidade.
Cursou medicina na juventude, mas não gostava do curso. Passou a estudar Biologia, que lhe dava mais tempo para se dedicar à leitura. A preferência, preservando a personalidade contraditória herdada do berço, era pela literatura modernista de Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade.
Ler ainda é o esporte predileto do autor. E esta reportagem trata precisamente das leituras que cercam seu novo livro. — Pergunto, então, se poderíamos fazer algumas fotos com uma camisa que não fosse a do Botafogo. Ele, num salto, diz que não. E acrescenta: nenhuma outra roupa cairia tão bem quanto o manto do Glorioso. Acertados, começamos a conversar.
A biblioteca do mestre

Tolstói, Dostoiévski, Turguêniev, Gógol e Tchékhov. Só para citar alguns. Obras de autores russos ocupam três prateleiras na biblioteca de Sidney Wanderley, que, sem hesitar, afirma: “Para mim, a literatura russa do século 19 é como o futebol brasileiro da década de 1970: imbatível”.
A biblioteca do poeta aposentado já chegou a ter seis mil livros. Nos últimos dez anos, ele doou quatro mil a familiares e adquiriu outros mil. Hoje, sua coleção conta com quatro mil obras, todas cuidadosamente organizadas, divididas por importância, preferência e lugar na memória afetiva de um leitor voraz.
Entre as prateleiras, destaca-se uma vasta coleção de obras de Carlos Drummond de Andrade, com quem Sidney se correspondeu por quase oito anos na década de 1980. Drummond continua a ser uma de suas maiores referências literárias. A obra completa de João Cabral de Melo Neto também ocupa um espaço de destaque, com várias edições diferentes de livros repetidos.

O poeta guia a reportagem até uma área especial onde guarda os livros de João Guimarães Rosa — incluindo os publicados postumamente. E revela: “Se eu tivesse que ler um único livro para o resto da vida, seria ‘Grande Sertão: Veredas’, de Guimarães Rosa. Já li cinco vezes e leria mais cinquenta”. Ele acrescenta: “Também sou fã dos ensaios de Montaigne e de livros da Bíblia, como Eclesiastes, Jó e o Apocalipse, apesar de ser ateu”.
Explicando que a leitura é uma forma de “outrificar-se”, Sidney Wanderley reflete: “Ninguém suporta ser só si mesmo o tempo inteiro”. Ele afirma que livros como ‘Grande Sertão: Veredas’ desconstruíram, a cada leitura, uma das grandes falácias da vida e da ficção: a dicotomia entre o bem e o mal.
“Ler é sempre assombrar-se de alguma forma. Ler Proust sempre me impactou. Já li os sete volumes de ‘Em Busca do Tempo Perdido’ três vezes. No entanto, o livro da minha verdadeira adoração é o primeiro, que se chama ‘No Caminho de Swann’”, revela.

Ele ainda passa alguns bons minutos discorrendo sobre obras preferidas da literatura americana, mostrando clássicos de William Faulkner, Saul Bellow, Philip Roth e Joyce Carol Oates. Da francesa, destaca os existencialistas Gide, Camus e Sattre, além de Marguerite Yourcenar, Annie Ernaux e Michel Houellebecq. Do Japão, também obras do século 20, de Mishima, Tanizaki, Ishiguro e Kenzaburo Oe.
O poeta de Viçosa também faz questão de mencionar autores alagoanos, como Jorge Cooper e Jorge de Lima, fundamentais em sua formação e matrizes da poesia local.
“EU SOU UM POETA APOSENTADO”
Vê-se que a literatura ainda é o principal fascínio do viçosense de 66 anos. E só disputa a atenção de Sidney com o futebol e com a serenidade das gatas Dóris e Paloma. Depois de publicar 17 obras, sendo doze delas livros de poesia, o escritor diz estar satisfeito com a carreira e com esse lugar de espectador que ocupa hoje, sem obrigações literárias.

“Quando você escreve poesia, você pensa o mundo em versos. Eu passei uns 40, 45 anos assim, mas percebi que a fonte secou. Não quis forçar a mão e parei. Resolvi imitar pessoas que fizeram esse processo também, como o mexicano Juan Rulfo e o paulista Raduan Nassar. Eles escreveram poucos livros e pararam. Não sinto falta de escrever poesia”, afirma, ao comentar o que o levou a escrever o novo livro, ‘Poesia etc.’.
“Hoje, eu não sinto nenhuma falta. Passei a ler mais, e comecei a compartilhar minhas leituras, principalmente em torno de poesia. Criei textos curtos para não cansar o leitor, sem textos analíticos ou acadêmicos. Não quero aquela linguagem pesada e pomposa”, explica e, ainda, defende sua posição de poeta fora de campo.
“Existe, sim, poeta aposentado. No meu caso, você sabe que está aposentado porque não sente mais a ‘comichão’ de escrever. Agora, leio e anoto frases interessantes sem a intenção de transformá-las em poesia. Já não sinto falta. Quando eu me aposentei da poesia, foi uma decisão gradativa e aceita com tranquilidade. Escrevi quatro poemas em 2018, e senti que a coisa estava diminuindo, mas aceitei isso com maturidade”, reafirma.
Aos que esperavam que a saída de cena da poesia fosse uma maneira de Sidney Wanderley passear pela prosa, escrevendo romances ou contos, ele avisa: “Eu nunca me senti motivado para escrever nada disso. Para isso, você precisa de uma disciplina que eu não tenho. Quando começava um poema, já ia pensando em acabar. Sou preguiçoso demais para ser um romancista. Também já me convidaram para escrever peças de teatro e literatura infantil, mas não é para mim”.
Se conselho fosse bom
O conselho que o autor viçosense dá aos leitores é que contentem-se com sua obra já publicada. Também não há a intenção de revisitá-las. O legado de Sidney Wanderley está posto.
“Acredito que vou ser lembrado pelo poema ‘Inequação’. Eu o escrevi em 1983, e ele ganhou uma dimensão que eu não esperava. Dizem que o Chico de Assis até usava esse poema para conquistar amores, sugerindo que era dele. Pelo menos é o que dizem por aí. Mas há outros poemas que escrevi na maturidade que gosto mais, e alguns leitores mais exigentes gostam também”, afirma.
Provocado, ele ainda aconselha jovens, aspirantes ou não ao ofício poético. “Como Drummond disse: ‘Leia muito e esqueça o máximo que puder’. É importante ser erudito e curioso, mas sem copiar os estilos dos mestres. Se você ficar preso àquilo que leu, vai ser uma cópia mal feita de João Cabral de Melo Neto. Não basta ter uma dor de cabeça, como a que João Cabral tinha, chamada ‘dor de cabeça remitente’, e tomar aspirina, porque isso não vai te transformar em João Cabral”, diz.
“E é muito importante cultivar os amigos. Eu tenho um núcleo duro de amigos muito forte, relações que mantenho há 40 ou 50 anos. A amizade é uma questão de caráter, e é difícil manter amizades com pessoas que mudam de valores ao longo do tempo. Mas elas são muito importantes. Portanto, cultive as amizades e leia, leia o máximo que puder”, finaliza.
Para adquirir ‘Poesia etc.’, basta entrar em contato pelo WhatsApp: (82) 99935-4966. A unidade custa R$ 30, com entrega a combinar.