É de uma casa simples, de três cômodos pequenos, em uma rua sem saída na parte alta de Maceió, que mais de 800 quentinhas saem mensalmente para matar a fome de pessoas vulneráveis e em situação de rua na capital alagoana. A dona da residência é Lanna Hellen, uma travesti de 34 anos, ex-dependente química e ex-prostituta, que viveu nas ruas por mais de uma década, sofrendo com a violência e a transfobia. Agora, ela mobiliza seus mais de 1 milhão de seguidores nas redes sociais para melhorar a vida de quem ainda passa pelo que ela já passou.
Lanna nasceu em São Paulo, mas vive em Maceió. Ainda na adolescência, se tornou usuária de drogas e passou 12 anos entre ruas e clínicas de reabilitação. “Deus me ajudou e eu consegui sair das drogas. Acabei vindo para o Nordeste, onde tenho parentes. É uma vida totalmente diferente da gente paulistana, aquela correria, aquela agitação. Eu queria recomeçar a minha vida do zero, esquecer o passado”, relata.
Apesar de vir em busca de uma vida nova, foi com o desespero e a fome que ela teve que conviver em Alagoas. A saída que enxergou foi o lugar comum para a população transsexual, marginalizada pelo preconceito: a prostituição.

“Eu conheci o mundo da prostituição aqui em Maceió. Entrei no mundo da noite, fazia programa na Praia da Avenida, conheci a violência da noite, esse mundo das meninas trans aqui em Maceió. Elas sobrevivem, não é uma vida fácil”, lembra.
“Muitas vezes, enquanto eu tava na avenida, eu olhava para o céu e pedia a Deus pra me tirar daquele lugar, daquela situação. Para as mulheres trans, fazer programa é a última saída, é o desespero. E não é fácil. É perigoso, é morrer todos os dias”, continua Lanna.
QUASE MORTE
Lanna tinha medo de morrer, segundo ela, várias vezes por dia. Até que em uma noite, na avenida, ela foi parar na mira de um revólver, sob as ameaças de um cliente. Diante do pavor, resolveu fazer o que chama de “propósito com Deus”.
“Eu disse, — Deus, se eu sair dessa situação, que eu não precise mais voltar para a avenida. Que eu saia da prostituição, que eu possa ajudar as pessoas”, revela. “Foi quando eu conheci o aplicativo, o TikTok. Fiquei sabendo que a gente podia fazer lives e ganhar um dinheirinho, então eu comecei a fazer os vídeos, conversava, mostrava minha rotina, falava dos meus problemas, e fomos ganhando engajamento”.

Por conta própria, a travesti fez seis quentinhas com o dinheiro que conseguiu nas lives do TikTok. Aos seguidores, contou a razão de ter preparado a comida e distribuído, abriu o coração.
“Eu fiz um propósito com Deus, não fiz com homens. Quando eu tô ali numa live, fazendo uma quentinha, eu me lembro de quando eu estava na rua, quando era eu quem estava esperando uma comida. Eu já estive na pele de uma pessoa de rua, de um dependente químico, de uma pessoa humilhada”, afirma Lanna.
E ela viu nas lives e nas redes sociais uma oportunidade de sair da prostituição e honrar a promessa que tinha feito.
“Eu fui aquela primeira vez, tímida, entreguei as seis alimentações lá. Mas aí uma senhora que recebeu veio até mim e perguntou ‘quando você vai voltar?’. Aquilo ficou na minha cabeça, marcado. Aquilo foi o que me motivou para começar isso como uma missão. As lives foram crescendo, as pessoas foram ajudando, ganhamos fogão industrial, geladeira, freezer”, conta.

"Quando a gente tá ali brincando, na live, a gente tá trazendo amor. A gente tá preparando aquelas alimentações com carinho e com a esperança e a fé de que essas pessoas que hoje estão no mundo que eu já estive, sejam libertadas também. Se Deus me libertou, ele pode fazer isso com elas também, restituir, libertar, transformar quem hoje é invisível em coisas grandes”, completa.
EXPULSA DO SHOPPING
Lanna Hellen se identifica como travesti e/ou mulher trans desde a juventude. Em 2020, ela viu sua vida ser revirada após um caso de transfobia que sofreu no Shopping Pátio Maceió. Ela foi expulsa do local ao tentar usar o banheiro feminino. O segurança que a expulsou foi condenado pela justiça.
O caso teve repercussão nacional e Lanna, apesar do sofrimento, usou a visibilidade para ampliar seu alcance e dar outro significado para o trauma que viveu.
“Comecei a pedir ajuda aos seguidores que chegaram, pra mim e para essa missão que eu tenho, de ajudar as pessoas carentes. Começamos a aumentar o número de quentinhas, até chegar nessas mais de 800 que fazemos. A entrega acontece duas vezes por semana, mais de 100 a cada dia. Vou eu e um motorista de aplicativo, que também é remunerado com o dinheirinho que a gente ganha nas lives”, explica.
Atualmente, Lanna tem 1 milhão e 200 mil seguidores no TikTok e mais de 120 mil no Instagram.
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“Eu quero devolver esse preconceito com outra moeda. A gente tem que ser exemplo, né? Eu quero trazer uma superação, mostrar que a gente que é LGBTQIA + não é bicho de sete cabeças. Temos dignidade, direitos, a gente busca nossos objetivos, mas nos falta oportunidade. O preconceito, a discriminação, a homofobia, a transfobia, tudo isso vai tirando nossas oportunidades. Então, se a gente tivesse oportunidade, pessoas como eu, que fazem um pouquinho, seriam destaque também na indústria, no comércio, em tudo”, defende Lanna.
Depois de tudo o que passou, a alagoana de coração diz que quer viver cada dia, sem ter medo das adversidades ou dos preconceitos.
“Eu tenho muito orgulho tem quem me tornei, aliás, tô me tornando. A gente pode ter 30, 40 anos, mas a gente tá aprendendo”, finaliza a, agora, influencer.