O Brasil tem uma flora das mais ricas do mundo e Santa Catarina é referência no legado de acervos de plantas nativas. As áreas prioritárias para conservação das plantas estão ameaçadas pelo desmatamento, apesar dos esforços para melhor conhecimento da diversidade das plantas no bioma Mata Atlântica por meio da criação pioneira de catálogos feitos em meados do século 20 e também pelo estado ser o primeiro a concluir o Inventário Florístico Florestal (IFFSC) na atualidade.
Segundo o professor Alexander Vibrans, do curso de Engenharia Florestal da Universidade Regional de Blumenau (Furb), em Blumenau, e coordenador do IFFSC, entre a elaboração do Flora Ilustrada Catarinense e o inventário, das 860 espécies de árvores e arbustos foram encontradas 150 com apenas um ou dois indivíduos em todo o Estado. De 250 espécies, foram encontradas menos de dez indivíduos por espécie.
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"Klein e Reitz [Raulino Reitz e Roberto Miguel Klein] encontraram 215 espécies a mais no estado na metade do século 20. Portanto, não detectamos mais de 20% das espécies que Klein e Reitz haviam encontrado. Isto deve-se ao fato de muitas delas serem naturalmente raras; assim, na nossa amostragem, elas não foram observadas. Com a redução da área florestal, muitas delas tornaram-se ainda mais raras e ameaçadas de extinção do que já eram em 1960", explica Vibrans.
No total, 435 espécies de árvores mostraram algum grau de raridade em ao menos uma das três tipologias florestais catarinenses, conforme as medições realizadas entre 2007 e 2010, quando foi realizado o primeiro ciclo de medições, e entre 2014 e 2019, durante o segundo ciclo.
"Não constatamos perda de diversidade de espécies entre o primeiro e o segundo levantamento. O processo não é tão rápido. A diferença média das duas medições em 313 parcelas foi de 7,5 anos. Registramos, em muitas parcelas das florestas amostradas, a saída (morte) de espécies pioneiras (por exemplo capororoca, jacatirão) e o ingresso de espécies mais exigentes de sombra (canelas, palmiteiro). Isto é um bom sinal, porque mostra que as florestas estão se desenvolvendo. Constatamos também que a massa vegetal (biomassa, e com isso, o estoque de carbono) das florestas cresce, em média, 1,3% por ano. Isto também é indicativo que as florestas estão aumentando seu estoque de carbono e cumprem, assim, um papel importante na fixação de CO2 atmosférico e numa certa redução de gases que provocam as mudanças climáticas", afirma.
Acervo de plantas
"Santa Catarina pode se orgulhar porque sempre foi o estado no Brasil que melhor conhece sua flora e vegetação graças ao trabalho dos botânicos padre Raulino Reitz e Roberto Miguel Klein. Eles executaram o projeto Flora Ilustrada Catarinense e ao varrer o estado todo em mais de 180 estações de coletas no tempo que nem existia asfalto", destaca o naturalista e ecólogo Lauro Eduardo Bacca.
O especialista lembra que após recolher material no estado todo, os dois naturalistas montaram o Herbário Barbosa Rodrigues, que fica em Itajaí, no Vale, com plantas devidamente conservadas, secas em estufas e conservadas dentro de latas. Depois de 20 anos coletando materiais pelo estado, a dupla tinha um trabalho para décadas, que não acabou até hoje. Atualmente a coleção está sendo reorganizada.
"Cinquenta anos depois, a Furb coordenou o Inventário Florístico Florestal de Santa Catarina com mais de 490 pontos amostrais permanentes pelo Estado e com recursos de imagens de satélite, envolvendo uma equipe de mais de 100 pessoas que percorreram o estado", completa ele.
Importância dos inventários
Inventários sistemáticos são necessários para que se possa compor um banco de dados consistente e possibilitar a implantação de políticas de conservação e de manejo. Além disso, a maioria das florestas catarinenses é secundária, são plantas jovens de 40 a 70 anos que se regeneraram após cortes e exploração.
"Sua diversidade é apenas um terço daquela que era das florestas originais; o mesmo vale para seu estoque de carbono", diz Vibrans.
Segundo o professor da Furb André Luís de Gasper, membro do IFFSC desde a origem, há possibilidade de haver espécies extintas.
"Tem três samambaias que as últimas e únicas coletas são de 1800 e começo de 1900. Podem até ter sido extintas, mas pode ser que sejam muito raras, por exemplo, e não conseguimos fazer novamente a coleta", explica.
Para o naturalista Bacca, preservar e interligar os corredores florestais são importantes ações para conter o avanço do empobrecimento da vegetação.
“É alarmante a drástica redução da biodiversidade das espécies arbóreas constatada através da comparação com dados de 50 anos atrás dos botânicos Padre Raulino Reitz e Roberto M. Klein (...) um quinto das espécies não foi mais observado em 2010. Se não fosse o trabalho hercúleo do padre e outros pesquisadores, não teríamos como dizer que nossa floresta foi deteriorada. Se passar de avião e ver tudo verde lá embaixo não é mais a imagem verdadeira do que foi a mata original. A hora que se faz a radiografia daquilo, a gente vê que a qualidade dos remanescentes é muito inferior a décadas passadas, tem a metade da biomassa original, a diversidade e a qualidade das florestas são muito menores. Claro que a restauração da mata é algo bom, mas para voltar a ter a mata parecida com a original é preciso esperar 100 a 200 anos sem ninguém mexer nela", contextualiza Bacca.
Apesar disso, das áreas remanescentes da mata original, cerca de apenas 5% do que havia originalmente, podem ser responsáveis por grandes “bancos de propágulos” com qualidade de diversidade genética e número de espécies.
"Graças a esses pontos de florestas de melhor qualidade, a natureza tem onde e como recompor as áreas degradadas. Esse processo pode ter ajuda do homem, enriquecendo em regiões específicas para acelerar o processo, mas sem promover uma 'bagunça genética'", pontua o especialista.
Como SC enfrenta o desmatamento e protege a Mata Atlântica
Entre 2019 e 2020, o Estado perdeu 887 hectares de Mata Atlântica, segundo o balanço da Fundação SOS Mata Atlântica. Santa Catarina conserva pouco mais de 2,1 milhões de hectares de áreas remanescentes do bioma, que abriga diversas formações florestais, além de restingas, manguezais e campos de altitude e está presente nas áreas urbanas e rurais.
"A degradação da mata Atlântica amplia enormemente o risco de extinção de espécies, promove perdas de solos férteis, desequilibra o balanço climático, compromete a quantidade e qualidade dos recursos hídricos, nos priva do salutar contato com ambientes naturais, dificulta a purificação do ar que respiramos. Tudo isso tem graves consequências, gerando prejuízos econômicos que se tornam cada vez mais expressivos, e reduzindo nossa qualidade de vida", explica professor João de Deus Medeiros, do Departamento de Botânica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Segundo Luís Fernando Guedes Pinto, que é diretor de conhecimento da SOS Mata Atlântica, a conservação e recuperação desta floresta e até mesmo a proposta de lei que tramita no Senado Federal pode reduzir 20% do território atual do Parque Nacional de São Joaquim, na Serra catarinense, por exemplo, são considerados pontos de atenção no estado, dado a imensa diversidade e o risco de extinção a um grande número de espécies.
"Na Mata Atlântica, cada hectare tem muito valor porque se trata de uma área onde qualquer perda impacta imensamente a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos, como regulação do clima e disponibilidade e qualidade da água", afirma.
Em meio a constantes tentativas de flexibilização da legislação ambiental durante a pandemia, uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) representa um avanço para a proteção do meio ambiente. Desde abril, foi aprovada de forma unânime a tese do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) de que prevalecem limites do Código Florestal nas áreas de preservação permanente (APPs) nos cursos d'água naturais urbanos, devendo ser observadas as metragens de 30 a 500 metros; e não o recuo de 15 metros aplicados com base na Lei do Parcelamento do Solo Urbano.
Segundo a coordenadora do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente do MPSC, promotora de Justiça Luciana Cardoso Pilati Polli, a decisão do STJ traz segurança jurídica por reafirmar decisões anteriores da Corte Superior e por assegurar proteção dos recursos hídricos e das áreas de preservação permanente.
"Reforça a aplicação da regra mais protetiva para o meio ambiente. Também possibilita, mediante procedimento de regularização fundiária, a integração e a readequação urbanística ambiental de assentamentos irregulares em regiões urbanas consideradas consolidadas por estudos técnicos socioambientais", diz.
Preservar esse patrimônio parece óbvio. Porém, por outro lado, os mais de 5,6 mil procedimentos extrajudiciais e processos judiciais em andamento nas promotorias específicas para cuidar de demandas que envolvem o meio ambiente no MPSC sinalizam que há quem tente não seguir regras ambientais. Ao mesmo tempo, essas pessoas não devem ficar impunes, com o Ministério Público atuando de forma preventiva e repressivamente em busca da proteção e da recuperação do meio ambiente.
Além disso, em defesa das áreas frágeis e importantes da Mata Atlântica, o MPSC e o Ministério Público Federal (MPF) conseguiram recentemente, em primeira instância da ação, a manutenção das regras fixadas pela Lei da Mata Atlântica, que é mais restritiva, como parâmetro para a atuação do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
A Justiça Federal condenou os institutos a não cancelarem os autos de infração ambiental lavrados no Estado por corte não autorizado de vegetação da Mata Atlântica, com base no entendimento emitido pelo ministro do Meio Ambiente em 2020. Procurados, o Ministério e o Ibama não se posicionaram sobre o assunto até a publicação desta reportagem.
A conservação da biodiversidade foi um dos pontos de preocupação no início do ano, quando ocorreu o primeiro leilão no novo modelo de concessões do Ministério do Meio Ambiente dos parques nacionais de Aparados da Serra e da Serra Geral, localizados na divisa entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
"O ICMBio (que gerencia as Unidades de Conservação no Brasil) entende que ações que incentivem o uso público (visitação) ordenado de uma área protegida favorece sim a conservação da biodiversidade, pois valoriza a área e mostra às comunidades locais que a área pode levar desenvolvimento à região. A vontade é de que tudo saia conforme o planejado, com benefícios para a conservação e para o desenvolvimento econômico local", explica o gerente regional do órgão Isaac Simão Neto.
Reservas particulares
Em meio às restrições por conta da pandemia, o Instituto do Meio Ambiente (IMA) de Santa Catarina não interrompeu as ações de fiscalização. Durante o ano de 2020, o órgão colaborou com 14 municípios na elaboração do Plano Municipal de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica.
Durante o período, foram realizadas quase 15 mil ações, como vistorias, e 845 fiscalizações ambientais. Entre elas, destacam-se operações contra extração ilegal de madeira na Reserva Biológica Estadual do Sassafrás, no Vale do Itajaí.
Em 2021, o monitoramento foi reforçado com uma ferramenta que detecta, registra e gera alertas de desmatamento após cruzamento de bancos de dados e imagens de satélite para comparar locais em diferentes período.
O estado também tem iniciativas privadas por ato voluntário do proprietário e em caráter perpétuo para conservação da biodiversidade, do solo, da água e demais atributos. Segundo informações passadas pelo ICMBio, em Santa Catarina são 71 Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) federais e 18 estaduais, que ocupam área de 35.000 hectares.
"Quando o proprietário cria a sua RPPN, ele está ciente de que esta ação é de perpetuidade e exigirá uma demanda de responsabilidades. Dos benefícios gerados pela criação da RPPN, o mais importante é o legado da conservação da natureza para as futuras gerações”, explica o presidente da RPPN Catarinense Ciro Gomes.
Espécies de plantas endêmicas
Santa Catarina apresenta aproximadamente 200 espécies de plantas endêmicas, ou seja, espécies de plantas que ocorrem unicamente no seu território, muitas delas em locais muito restritos e que chamam a atenção por serem naturalmente raras.
"Muitas dessas espécies são tão raras que são completamente desconhecidas pela população. Quando se fala em algumas espécies ameaçadas características daqui, como a araucária, o xaxim ou o palmiteiro, dificilmente alguém não conhece essas plantas. Mas quando se fala em Commelina catharinensis, Siphocampylus baccae, Prosopanche demogorgoni ou Ludwigia humboldtiana, poucas pessoas conhecem. Algumas dessas plantas constam em listas de espécies ameaçadas. Outras são consideradas extintas, de tanto tempo que não são vistas. A grande maioria delas simplesmente ninguém sabe sobre seu status de conservação", explica o biólogo mestre em botânica pela UFSC e consultor em curadoria do Herbário Barbosa Rodrigues, Luís Funez.
Ainda de acordo com o especialista, com o avanço da degradação dos nossos habitats naturais, muitas vezes, por completo desconhecimento, as espécies endêmicas são negligenciadas e não constam em laudos.
"São geralmente plantas herbáceas, que representam mais de 90% das espécies endêmicas de Santa Catarina. São pequenas ervas, que passam facilmente despercebidas", disse.