Casos de nudes feitos com IA se multiplicam
Nas últimas semanas, quatro casos semelhantes se tornaram notícia no país. Pais de vítimas adolescentes temem as consequências que essas imagens podem ter ao longo dos anos
Em uma manhã do início de novembro, a estudante Lara*, de 13 anos, correu desesperada em direção ao banheiro da escola e começou a chorar copiosamente.
Pouco antes, ela havia recebido uma mensagem com uma fotografia que a deixou abalada. Na imagem, ela aparecia nua.
Lara se lembrava daquela foto, feita por sua mãe em um momento em família. A estudante havia compartilhado o registro em seu perfil no Instagram. Mas tinha certeza de que estava de biquíni.
A adolescente foi vítima de uma manipulação de imagens para fazer nudes criados com inteligência artificial (IA), o que fez com que ela aparecesse nua na foto.
“Quando a minha filha me ligou chorando, achei até que fosse uma pegadinha, porque ela não é de se exaltar, gritar ou chorar”, diz Vanessa*, mãe de Lara, à BBC News Brasil.
Assim como Lara, ao menos outras 28 estudantes com idades entre 13 e 16 anos de escolas de elite da Barra da Tijuca, bairro na Zona Oeste do Rio de Janeiro, sofreram com a mesma situação.
Grande parte das vítimas estudam no tradicional Colégio Santo Agostinho.
“É tão impensável e surreal que essas pessoas tenham essa crueldade com essas meninas tão novas”, diz Vanessa.
De acordo com os relatos dos pais e das próprias vítimas, os responsáveis por manipular as imagens foram meninos adolescentes que estudam no Santo Agostinho.
A escola disse em nota à BBC News Brasil que acompanha o episódio.
O caso é investigado pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) do Rio de Janeiro, que tem ouvido os envolvidos.
Garotas que estudam no Colégio Santo Agustinho, na Barra da Tijuca, foram algumas das vítimas de imagens falsas — Foto: Reprodução
“Diligências seguem para identificar a autoria do crime e esclarecer o caso”, informou um comunicado da Polícia Civil do Rio de Janeiro.
A situação tem se repetido com certa frequência em escolas brasileiras e também em outros países.
Em questão de dias, casos semelhantes foram denunciados em colégios de Recife, em Pernambuco, e de Belo Horizonte, em Minas Gerais.
No exterior, um dos casos que mais repercutiram ocorreu no vilarejo de Almendralejo, na Província de Badajoz, na Espanha.
O caso se tornou alvo de investigação policial. Mais de 20 meninas, com idades entre 11 e 17 anos, se apresentaram como vítimas de nudes feitos com IA.
Outro caso com grande repercussão foi registrado em uma escola de Nova Jersey, nos Estados Unidos. Alunas do Ensino Médio descobriram que garotos que estudam na mesma escola haviam manipulado imagens delas com roupas para que elas aparecessem nuas. Os pais das jovens denunciaram o caso.
‘Toda mulher é vítima em potencial’
Um dos fatores que preocupa sobre esse tipo de caso é que as ferramentas disponíveis para manipular esse tipo de imagem são de fácil acesso. Basta fazer uma busca na internet que surge uma lista com diversas opções.
Por isso, alertam especialistas, casos assim podem se tornar cada vez mais comuns.
“Isso pode se tornar epidêmico porque é muito fácil (acessar ferramentas de inteligência artificial para manipular imagens)”, diz a advogada Estela Aranha, assessora especial de Direitos Digitais do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).
“Hoje, com esse tipo de instrumento, todas as mulheres e meninas podem ser potenciais vítimas desse tipo de crime. E, no ambiente escolar, em que há bullying, as pessoas podem achar que isso é divertido”, acrescenta.
Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio), diz que essas ferramentas de inteligência artificial devem ficar cada vez mais sofisticadas e com efeitos ainda mais reais. Enquanto isso, ele pontua, crianças e adolescentes continuarão postando fotos nas redes que podem ser usadas facilmente nesses aplicativos.
“Os aplicativos de IA não vão simplesmente desaparecer. Por mais que a gente pense em fazer com que eles sumam das lojas de aplicativos, sempre vai haver sites de fácil acesso que ofereçam essas funções.”
Souza avalia que esses aplicativos de inteligência artificial não devem ser considerados os vilões desses casos de fotografias falsas. Ele frisa que o problema é a forma indevida como essas ferramentas podem ser usadas, por isso diz que é fundamental que haja cada vez mais esclarecimentos sobre os riscos e as consequências que esse tipo de manipulação de imagens pode ter.
“É preciso enfrentar essa situação. É preciso que a legislação seja aplicada para punir por simulação de menores em atos pornográficos. É preciso haver uma educação digital sobre o uso seguro e responsável da Inteligência Artificial”, declara Souza.
‘Não é montagem de fundo de quintal’
Vanessa conta que, enquanto as meninas vítimas dos nudes feitos com IA estavam abaladas com as imagens, os garotos que criaram as imagens afirmavam que tudo não passava de uma brincadeira.
“Em grupos desses meninos no Telegram, eles pediam fotos das meninas. Escolhiam a dedo as mais populares e bonitas. Iam no seu perfil no Instagram, pegavam uma foto e faziam a montagem”, diz Vanessa à BBC News Brasil.
Isso só veio à tona porque um aluno que participava do grupo decidiu revelar a situação às vítimas.
“Esse menino contou que essas fotos foram feitas no laboratório de informática do Santo Agostinho e que isso acontecia desde o início de outubro”, diz Vanessa.
Uma das preocupações dos pais das estudantes que fizeram denúncias à polícia é a forma como as imagens manipuladas são muito realistas.
“Nos grupos, ninguém tratava como uma montagem, era como se fosse um nude real das meninas”, afirma Vanessa.
“É fácil falar: ‘ah, mas essa foto é falsa, por que está tão preocupada?’ Mas não é uma montagem de quintal, é uma boa imagem. Quem olhar nem sempre vai saber se é real ou não.”
Também preocupa onde esses falsos nudes podem ir parar.
“Em sites adultos, quem vai dizer se é verdade ou mentira? É a minha filha que está ali”, acrescenta Vanessa.
Estela Aranha reforça que as fotos manipuladas com IA são especialmente realistas.
“É muito mais crível do que pegar um rosto e colocar em um corpo qualquer. É exatamente como a pessoa é, mas nua”, diz Aranha.
Estela Aranha (em foto com o ministro Flávio Dino), responsável pela área de Direitos Digitais no Ministério da Justiça, diz que é preciso punir responsáveis por fotos manipuladas para evitar aumento de casos — Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil
Os pais das vítimas temem o impacto destas imagens no futuro delas e como isso pode afetá-las.
“Minha filha vai conviver com isso para sempre. A gente não sabe, daqui a cinco anos, se essa foto vai aparecer de novo, já que é tão real e nem parece montagem”, diz Vanessa.
“Ela pode estar em uma entrevista de emprego e encontrarem essa imagem e, como não vão saber que é montagem, ela pode ser julgada por isso”, acrescenta.
O Colégio Santo Agostinho disse, em nota, que permanece atento em relação ao caso e que mensagens que “prejudicam a integridade emocional das crianças e dos adolescentes envolvidos não serão admitidas em qualquer espaço” do colégio.
A unidade de ensino afirma que tem trabalhado de “forma firme e incansável em diversas ações que a situação exige” e que prestou esclarecimentos à polícia sobre o caso.
*Nomes alterados para preservar as identidades de mãe e filha.
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