Memórias póstumas de Jayme Miranda: retratos interrompidos pelo regime militar
Contada pelo neto, conheça a história do alagoano que foi morto na ditadura
Marcado por perseguições políticas, repressão, censura e desaparecimentos, o regime militar brasileiro durou 21 anos e é lembrado no país como um episódio grave contra a democracia e liberdade de expressão.
Começando por um golpe de estado contra o governo do então presidente eleito João Goulart, popularmente conhecido como Jango, que chegou ao poder como vice-presidente pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), a ditadura (como ficou conhecido o período) veio com a promessa de erradicar a ameaça comunista no país.
Com a tomada de poder pelos militares, diversos Atos Institucionais (AI) foram postos em vigor. Do AI-1 ao AI-5, as medidas buscavam ampliar a capacidade de governabilidade do então regime militar e, ao mesmo tempo, restringir possibilidade do exercício democrático.
Hoje, dia 31 de março, essas mais de duas décadas completam seus 55 anos de dúvidas e incertezas, deixando marcas nos familiares das vítimas torturadas pelo regime.
Julga-se que aproximadamente 475 pessoas desapareceram por serem, de alguma forma, contrárias ao governo. Contudo, não se sabe ao certo a quantidade exata de pessoas pegas pelos militares, pois muitas informações a respeito deste período ainda não foram divulgadas.
Em Alagoas, a história não foi diferente. Natural do estado, o jornalista e militante político Jayme Amorim Miranda desapareceu aos 49 anos de idade quando deixou sua casa no Rio de Janeiro para encontrar-se com um amigo do Partido Comunista Brasileiro (PCB), no dia 04 de fevereiro de 1975.
Considerado como terrorista pelo governo, o alagoano precisava constantemente trocar de residência, buscando fugir de uma eventual captura. Até hoje, detalhes sobre sua morte são controversos.
Acredita-se que Jayme tenha sido torturado e morto em São Paulo, com seu corpo jogado a 200 milhas da costa do Oceano Atlântico. Todavia, outras versões apontam seu local de morte em Rio Avaré, interior do estado paulista.
A Gazetaweb buscou contato com os familiares do Jornalista desaparecido e encontrou Thyago Miranda, neto de Jayme. O bancário de 33 anos de idade contou a respeito da história de sua família:
Você poderia nos contar sobre a sua relação com ele?
Thyago Miranda: Cara, eu sou neto dele. Não o conheci, pois ele desapareceu em 75 e eu nasci em 86. Tudo o que sei a seu respeito é do que me falaram e das pesquisas que fiz. Posso te falar de tudo sobre, mas relação eu não tive.
Por favor, conte-nos sobre ele.
T.M: Então, sobre as investigações, existe um procedimento investigatório aberto pelo Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo. Eles recolheram, junto aos arquivos públicos, quaisquer documentos que fazem menção ao meu avô. Também fizeram oitivas - termo jurídico para o ato de ouvir testemunhas - com agentes que, supostamente, estariam envolvidos em seu sequestro, tortura e assassinato.
Nós, familiares, também buscamos informações com jornalistas e militantes que cobrem o assunto. Temos algumas novas informações e pistas, mas mesmo após 44 anos continuamos a busca .
Ele era secretário de organização do PCB. Terceiro homem na hierarquia do partido. Lutava contra a ditadura, mas foi contra a luta armada, dizia que precisavam isolar a ditadura politicamente.
Mesmo com essa posição que vai de encontro ao que esse presidente alega, que só morreram "terroristas", Jayme foi morto covardemente e, antes disso, sofreu todo tipo de tortura e até hoje não tivemos o direito de enterrar seus restos mortais
Como você encara o incentivo à comemoração do golpe?
T.M: Escárnio total, inadmissível um presidente da república aventar - expor, agitar - uma possibilidade que, além de tudo, é criminosa, porque ele incentiva apologia a quebra da ordem constitucional, o que deve ser repelido, independente dos argumentos ideológicos que ele apresenta. Houve uma quebra da ordem constitucional. Sem falar nos crimes cometidos por uma minoria que se valeu de "uma carta branca" para estuprar, torturar, matar, ou seja cometeram todo o tipo de crime e violações dos direitos humanos no país. Volto a enfatizar, uma minoria, porque segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), 377 agentes foram apontados como infratores durante o período de ditadura militar.
Mas, isso não chega a ser uma grande surpresa para ninguém, tendo em vista as posições adotadas desde sempre pelo atual presidente, que já declarou que quem procura osso é cachorro, conforme ele mesmo exaltou, em seu voto pelo impeachment da presidente Dilma, em referência a um dos maiores torturadores brasileiros, o general Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Cabe a nós, familiares, e a sociedade civilizada, independente do seu viés ideológico, repudiar tais declarações, assim como cabe às instituições repelirem juridicamente esse absurdo e é o que já está ocorrendo. O MPF já se posicionou contra as declarações do presidente.
Você acha que os discursos de hoje são diferentes dos disseminados durante a ditadura?
T.M: Infelizmente em um país atrasado culturalmente e que não conhece o seu passado, ou seja, simplesmente varreu para debaixo do tapete o que ocorreu nos porões da ditadura, a tendência é que se volte a repetir os mesmos erros e discursos. Na Argentina e no Chile, os criminosos foram presos e condenados. No Brasil, saíram impunes.
Volto a repetir, os agentes que participaram dos crimes cometidos na ditadura são a minoria do contingente das Forças Armadas, que se valeram de uma carta branca da cúpula do regime para cometer todo tipo de crime.
O dia 31 de março carrega um peso para sua família?
T.M: Sempre. É um data que nos faz vivenciar tudo o que ocorreu. Não só com o Jayme, mas toda a família foi perseguida, os irmãos dele, o pai, quase todos foram presos. O comércio da família, que tínhamos um hotel, era constantemente invadido, pichado, as pessoas atravessavam a rua quando vinha um Miranda passando. As tias contam que até para namorar alguns pais eram contra por serem membros da família. E, sem dúvida, o aniversário do golpe que, na verdade, é dia 1º de abril, trás à tona essas situações para nossa família.
Mas, apesar de tudo, você sente orgulho de ser da família Miranda?
T.M: O Jayme sempre foi muito presente. As suas ideias e a sua história de vida são muito inspiradoras. Ele foi um homem que, na década de cinquenta, tinha duas profissões: advogado e jornalista. Era fluente em quatro idiomas, poderia ter tido uma vida muito confortável nos moldes tradicionais, no entanto, ele abriu mão de tudo para lutar pelos menos favorecidos, os pobres e miseráveis do nosso país. Portanto, temos, sim, orgulho dele e de pertencermos a essa família de sobreviventes desse período tenebroso da história do brasil.
A militância de seu avô te incentivou a buscar o mesmo caminho?
T.M: Sim, com alguns pontos de vista divergentes, mas, na essência, sim.
Você tem alguma mensagem que gostaria de passar para as pessoas neste 31 de março?
T.M: Que independente da questão ideológica, não há o que se comemorar. Nós da família de Jayme nunca quisemos vingança contra seus algozes, sempre lutamos por justiça e que as pessoas que cometeram esses crimes hediondos, não só com Jayme, mas com tantos outros brasileiros, tivessem um julgamento justo, dentro do devido processo legal, apesar de terem negado esse direito aos nossos entes queridos. A nossa luta é uma luta por justiça e esclarecimentos.
Presidente incentivou 'celebração' e criou polêmica
Recentemente, o atual presidente da República Jair Bolsonaro negou a existência do Brasil ter passado por uma ditadura. "Onde você viu, no mundo, uma ditadura entregar para a oposição de forma pacífica o governo? Só no Brasil. Então, não houve ditadura", declarou Bolsonaro, em entrevista à TV Bandeirantes.
Segundo o presidente, o dia 31 de março é um marco histórico para o país e na data deverá ser lida uma ordem do dia [mensagem oficial], com referências a datas e fatos históricos. Contudo, Bolsonaro reconhece que o regime cometeu erros.
"Nunca tivemos, nas Forças Armadas, uma política de estado repressiva dessa forma que tentam o tempo todo botar na nossa conta. (...) Eu não quero dizer que foi uma maravilha, regime nenhum [é uma maravilha]. De vez em quando tem um probleminha", disse.
O MPF recomendou aos batalhões do quartel do Exército de Alagoas a não comemorar o 31 de março, como foi incentivado por Bolsonaro. Todavia, na sexta-feira (29), os 55 anos foram celebrados com as portas fechadas, "somente com o público interno", de acordo com o assessor do batalhão.
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