Hordas de turistas dispostos a gastar e fortalecer o comércio local costumavam ser motivo de orgulho para as cidades, que inclusive se esforçavam para receber mais e mais visitantes. Mas, em muitos lugares do mundo, inclusive destinos queridinhos dos brasileiros, o jogo virou. Agora, moradores criam estratégias para espantar turistas, entre elas taxas, limites diários de passeios e até proibição de circular ou tirar fotos em determinados pontos.
O fenômeno não tem um nome oficial, mas é chamado informalmente de "turismofobia" ou "overtourism", por exemplo. Na prática, os termos referem-se à presença exagerada de turistas em um determinado lugar.
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Para Ricardo Roitburd, docente da área de Turismo do Senac São Paulo, a "turismofobia" reflete a insatisfação dos moradores locais com as consequências que esse excesso traz.
"Essa insatisfação pode ocorrer por diversos motivos, como o aumento da violência e do trânsito e o esgotamento da infraestrutura (água, energia, esgoto etc.)", explica Roitburd.
"A baixa percepção de retorno econômico e social da vinda dos turistas tem fomentado o crescimento expressivo da 'turismofobia'."
Renan Augusto Moraes Conceição, pesquisador e doutorando em turismo pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP) e professor do Instituto Federal de São Paulo, tende a refutar o termo "turismofobia" — fobia, ao pé da letra, significa "medo exagerado", "falta de tolerância", "aversão".
Ele atribui a popularização da palavra à imprensa — para além disso, os argumentos dele, entretanto, vão ao encontro do que defende Roitburd.
"Não é um ódio ao turista. É contra essa forma de se produzir um fluxo turístico que desconsidera completamente a população que vive naquele lugar", diz Conceição.
"Não é tão simples assim. É o que aparece [na imprensa]. Porque, aí, tem um entendimento mais amplo, mas acaba deixando de fora e desconsiderando os reais motivos da manifestação, que é justamente esse encarecimento da vida, essa impossibilidade de viver onde a pessoa morou a vida inteira, os transtornos e os distúrbios urbanos."
Entre os principais problemas com o excesso de turismo, segundo profissionais que estudam o tema, estão:
- trânsito em excesso;
- muito barulho;
- perda da identidade local;
- e substituição de comércios locais por grandes empreendimentos.
Espanha, Holanda, Japão, Brasil...
A Espanha é um dos exemplos mais clássicos (e antigos).
Em julho desse ano, moradores protestam com pistolas de água contra turistas em Barcelona sob o lema "Basta! Ponhamos limite ao turismo!". Por lá, o prefeito Jaume Collboni anunciou planos de proibir aluguéis de imóveis de curto prazo a partir de novembro de 2028.
Também na Espanha, outro exemplo é Maiorca. "Muitos turistas têm comprado imóveis na ilha, inflacionando os valores e dificultando a compra pelos moradores locais", avalia Roitburd.
Já em Veneza, na Itália, o governo passou a cobrar uma de taxa diária de 5 euros de turistas. E Amsterdam, na Holanda, proibiu a construção de hotéis como uma tentativa de "manter a cidade habitável para residentes e visitantes".
E, mais recentemente, ocorreu algo semelhante em um local fora do tradicional círculo europeu: o Japão, considerado um destino longe e caro.
"A partir das Olimpíadas de Tóquio, o Japão entrou no radar do turismo internacional, o que incomodou a população. Aí, eles começaram justamente a fazer as mesmas coisas que aconteceram na Europa: fechar ruas para a circulação de turistas, como é o caso de Kyoto, aquelas ruas tradicionais onde ficam as casas de gueixas e tudo mais", diz Conceição.
Em março, Isokazu Ota, um dos principais membros do conselho comunitário local, disse, segundo a agência AFP, que as autoridades não queriam tomar tal atitude, mas que "estavam [todos] desesperados".
Em maio deste ano, outra cidade no Japão inaugurou uma cortina preta de 2,5 metros de altura e 20 m de comprimento para separar os turistas de uma vista do monte Fuji em frente a uma loja de conveniência.
Por aqui, um exemplo clássico e conhecido é Ubatuba, no Litoral Norte de São Paulo. Em dezembro de 2023, a prefeitura deu início à primeira temporada de verão desde a implantação da taxa ambiental — uma cobrança diária para veículos na cidade.
Em todo caso, como defende Conceição, "o cotidiano do morador é profundamente impactado por esse fluxo intenso de turistas."
De quem é a culpa?
Muita gente coloca a "culpa" no pós-pandemia. De certa forma, é um clichê, mas real: a Covid mudou muito o modo de viver e trabalhar de todos. Já se passaram quatro anos desde o ápice, mas ficou a sensação de que é necessário aproveitar mais os momentos em família, evitar o trânsito com deslocamentos ao trabalho e privilegiar o bem-estar.
Bem-estar esse que, muitas vezes, está ligado a passeios, viagens...
"No pós- pandemia, os locais turísticos tiveram um aumento expressivo de turistas que, por um lado levaram emprego e crescimento econômico, mas, por outro, inflacionaram os preços e ocuparam os espaços outrora dos moradores", diz Roitburd.
Para além da pandemia, há quem defenda que a facilidade proporcionada pela internet, que se disseminou ao longo dos anos, tenha peso nessa discussão. Por quê? Com mais acesso a informações, fica mais fácil encontrar destinos, fazer reservas, comprar voos, trocar moedas etc.
Além disso, a popularização de séries e filmes ambientadas em lugares fora do comum podem ter dado um empurrãozinho.
Segundo a agência de notícias AFP, o fascínio pelas gueixas de Kyoto cresceu desde a estreia da série "Makanai, a cozinheira maiko", no início de 2023, na Netflix.
Tem solução?
Se discutido de forma ampla, com autoridades, estudiosos do tema e os próprios moradores, pode ser que sim — o que não significa que a tarefa seja fácil.
O professor Roitburd defende que o assunto seja debatido, também, em sala de aula.
"Os futuros profissionais do setor precisam perceber este movimento e principalmente refletir sobre isso, não só para ficarem atualizados, mas, principalmente, para ajudarem a encontrar soluções inovadoras para estes conflitos."
Quanto a cobranças de taxas, por exemplo, há quem defenda que isso elitiza o acesso a lugares turísticos importantes, já que a viagem tende a ficar mais cara.
"São formas eficientes, mas, ao mesmo tempo, excludentes, causando uma discriminação entre os mais rápidos para reservar ou os de maior poder aquisitivo", diz Roitburd.