Envoltas em mistérios, crenças e boas histórias, a Carrancas se tornaram elementos valiosos, cobiçados e celebrados por admiradores e colecionadores de obras de arte. Mas para além de suas centenas de diferentes representações encontradas em diversos estados, um dos atributos que mais costuma chamar a atenção é a sua história, muitas vezes desconhecida do grande público. Surgida na segunda metade do século XIX, período marcado pelas grandes navegações ao longo do majestoso rio São Francisco, elas foram criadas para ornamentar embarcações que levavam mantimentos e movimentavam os comércios de cidades distantes das capitais.
“Unindo a arte ao misticismo típico do povo brasileiro, estas figuras folclóricas começaram a ser produzidas por artistas para serem colocadas nas proas de barcos que circulavam por toda a extensão do rio. A ideia era ter uma figura imponente, com uma fisionomia sisuda, pintada com cores fortes, com grandes dentes e cara de poucos amigos para afastar não só maus espíritos, mas também possíveis ladrões pelo caminho. Com o tempo, esta foi se tornando uma característica comum nas embarcações da região, promovendo uma profusão de carrancas com diferentes assinaturas a depender do artista, da localidade e do material”, revela Lucas Lassen, curador da Paiol, marca que atua com mais de 400 artesãos e comunidades artesanais de todo o Brasil.
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Entalhadas majoritariamente em madeira, estas obras passaram a se afastar da margem dos rios para serem transformadas em amuletos que mantiveram sua função ligada ao afastamento dos maus espíritos, mas que ganharam adaptações - sobretudo de tamanho - para que se adequassem a outros ambientes. Como o Rio São Francisco começa em Minas Gerais, atravessa toda a Bahia, passa por Pernambuco e deságua na divisão natural entre o Sergipe e Alagoas, as carrancas foram ganhando interpretações ao longo de todo este percurso que abarca mais de 520 municípios.
A Rota das Carrancas pelo São Francisco
De acordo com Lassen, embora a tradição tenha começado há quase 200 anos, ainda hoje a produção de carrancas continua forte dentro da arte popular, sobretudo nos estados percorridos pelo rio. De Minas Gerais, algumas das obras que mais se destacam são as da Associação dos Carranqueiros de Pirapora, cidade às margens do Velho Chico. Entalhadas em madeira, com grandes dentes e desenhos compostos por linhas e círculos, elas mantêm a cor natural da madeira, sem pintura.
Já do Vale no Jequitinhonha, tradicional reduto de exímios ceramistas, o artesão José Maria, da cidade de Caraí, utiliza o barro para dar vida a peças com formas mais geométricas e mantendo a pintura característica do Vale, que utiliza os diferentes tipos de barro para produzir diferentes tonalidades de pigmentos.
Na Bahia, mais especificamente eu Jaguarari, um dos destaques fica para os artesãos Eliene da Silva e Fernando Ferreira da Conceição que também trabalham com a madeira e trazem peças com características bem conhecidas do público, como lábios e olhos vermelhos e cabelos pretos, além de João da Conceição, que produz peças com pernas.
Reconhecido como o mais antigo carranqueiro do município de Petrolina, em Pernambuco, Severino Borges de Oliveira, o Mestre Bitinho, chegou à cidade nos anos 1970, mas é natural da cidade de Taipu, no Rio Grande do Norte. Sem qualquer desenho prévio, ele trabalha na madeira umburana usando ferramentas básicas como formão, facas e serrotes, sendo uma dos grandes incentivadores da região à produção de carrancas por novos artesãos.
Outra grande referência pernambucana, é a Mestre Ana das Carrancas - Ana Leopoldina dos Santos - que nasceu em Ouricuri, mas também se destacou em Petrolina, cidade que tem até um centro de arte e cultura com seu nome. Em suas criações, Ana transportou o personagem para o universo da cerâmica, colocando uma identidade própria que aparece tanto em peças decorativas, quanto utilitárias. Seu legado é mantido por familiares que continuam produzindo peças com as mesmas características.
Ainda em Pernambuco, os traços indígenas também aparecem nas carrancas. João Kambiwá, da Etnia Kambiwá, também utiliza a madeira em suas obras. Destacando orelhas enormes e os tradicionais dentes à mostra, elas se destacam por contar com pequenos recortes que formam uma espécie de grafismo. De Pernambuco, o Velho Chico começa a descer para Alagoas, atravessando todo o estado.
Por lá, mais especificamente em Belo Monte, uma das principais referências de carrancas vem do mundo encantado do Mestre Jasson. Dando vida e sentido aos galhos secos encontrados no semiárido alagoano, suas carrancas mantêm o formato orgânico e o colorido de suas obras. Todas as peças podem ser encontradas na Paiol: www.lojapaiol.com.br.
*Com assessoria