
Quem não se lembra de um “campo-torrão” na infância? Ou do joelho ralado após uma queda no “racha”? E aquele dedão do pé machucado depois de chutar o chão duro ao invés da bola? Se essas perguntas causam estranhamento para quem nasceu nos tempos atuais, não é por acaso. Hoje, as crianças têm o primeiro contato com o futebol em escolinhas, nos confortáveis gramados sintéticos, sem nunca ter experimentado a realidade árida dos campos de terra. E, quando se observa com mais atenção, é possível perceber que, a falta dessas vivências, no fim das contas, está fazendo o futebol perder a capacidade de improviso e arte.
Os tempos modernos trouxeram a expansão imobiliária desenfreada. Não é de se espantar que os antigos campos de futebol se tornaram terrenos cobiçados para empreendimentos imobiliários. Em Jacarecica, onde vivi minhas primeiras experiências com a bola, o campo de terra já não existe mais. Feitosa, Barro Duro, Vila Saem e tantas outras localidades perderam os campos, os locais sagrados para os boleiros. E o que acontece quando esse pedaço de terra desaparece?
A resposta é clara: o impacto é enorme. O talento genuíno, aquele que nasce da improvisação, da necessidade de se virar com pouco, começa a desaparecer. O talento “formado” em escolinhas e campos sintéticos é mais previsível, automatizado. A habilidade apurada nas ruas, nos campos de terra batida, é substituída pela técnica pré-fabricada, quase engessada. Hoje, ao invés de dominar a bola e improvisar, o jovem jogador é treinado a dar o passe, seguir um roteiro de jogo e “não inventar moda”. O futebol tornou-se um produto e os jogadores, meros operários de um processo de formação que, ironicamente, visa à “melhora”, mas que acaba retirando a essência.

Se isso ocorre em cidades menores, imagine nas grandes cidades, nas periferias onde os campos desapareceram há mais tempo. O resultado não poderia ser outro: a geração de jogadores mais mecanizados, sem a naturalidade que antes se conquistava jogando descalço em campos de terra, com o improviso como regra e não exceção.
As cidades até ganharam novos espaços de lazer com gramados sintéticos, muitos deles na periferia, mas será que isso realmente contribui para a formação de grandes talentos? A resposta é, no mínimo, ambígua. Embora as crianças joguem mais, elas não estão, como antigamente, desenvolvendo o domínio do jogo, a habilidade para resolver situações inesperadas. O futebol se transformou em um grande negócio, e a formação de novos jogadores segue o modelo da produção em série. Ao invés de criar craques, estamos criando atletas padronizados, que seguem ordens, não sabem improvisar.
É urgente repensarmos a formação dos jogadores. A essência do futebol brasileiro, aquela que nos fez admirados pelo mundo, está sendo negligenciada. Para resgatar isso, poderíamos usar as mesmas arenas que ocupam os antigos campos de terra, mas com monitores, ex-jogadores, para ensinar e, mais importante, inspirar. Mostrar aos jovens a beleza do jogo livre, da criatividade, do drible, da malícia de um bom passe.
Trago aqui hipóteses, sugestões, discussões necessárias para que possamos refletir sobre o resgate do que temos de mais valioso: a nossa capacidade única de jogar. Se, sem os campinhos de terra, seguimos apenas replicando jogadores automatizados, o sonho de formar grandes craques vai continuar se distanciando cada vez mais. Apenas os poucos que têm o dom nato, os que conseguem sobreviver à máquina do futebol moderno, poderão mostrar o que restou do nosso jeito de jogar. Até quando?